sexta-feira, 31 de maio de 2013

o azul veio do nascente...

Fachada da Capella degli Scrovegni, em Pádua, na região do veneto, Itália.
A fachada modesta esconde o interior repleto de afrescos de autoria de Giotto, nos quais foram utilizados, de uma só vez, o azul ultra-marino trazido pelos mercadores de Veneza sob a forma da gema do lapis lazuli de origem afegã, e os avanços do realismo escultórico característico do traço do artista. 
Amanhã está aberta oficialmente para o público a 55a. Bienal de Arte de Veneza. Até 24 de novembro, a mais importante bienal de arte contemporânea exibirá, além dos pavilhões nacionais de 88 países - número recorde -, uma mostra especial, denominada "O Palácio Enciclopédico", uma espécie de museu imaginário contendo representações de grandes descobertas da humanidade, a qual o curador Massimiliano Gioni optou por conceber como uma leitura antropológica do estudo da imagem, "apagando limites entre artistas profissionais e amadores, entre quem faz parte do sistema da arte e quem não faz" (citando o próprio Gioni).

Se Veneza hoje é um santuário da arte contemporânea produzida ao redor do mundo, a "repubblica serenissima" sempre desempenhou esse papel de centro convergente da divisão milenar feita entre ocidente e oriente. Veneza, como cidade-estado e principal pólo comercial da Europa no final da Idade Média, foi a guardiã do sincretismo artístico, da fusão entre leste e oeste. Seja na culinária, na arquitetura, como nas artes em geral. Na pintura, por exemplo, por ter sido a primeira parada, no ocidente, de uma pedra denominada lapis lazuli, de origem afegã, matriz do pigmento azul intenso, o chamado azul ultra-marino, até então fora da paleta de cores dos exemplos conhecidos de pintura grega, romana ou mesmo da baixa Idade Média. 

A introdução do azul na pintura ocidental, do azul real, intenso, é considerada uma verdadeira revolução na arte ocidental, a apropriação técnica de uma cor cujo simbologia remete à transcendência e espiritualidade máximas, como o azul do mar, o céu, o horizonte, o azul da melancolia, dos sonhos, dos sentimentos mais íntimos. E, dentre os artistas daquele tempo, o arquiteto e pintor Giotto di Bondone foi o pioneiro na aplicação do novo pigmento na pintura do final do século XIII, início do século XIV. Estamos falando de uma época pré-renascimento italiano, quando as características mais importantes daquela escola ainda estavam sendo gestadas. 

Os afrescos de Giotto que compõem o conjunto artístico e arquitetônico da Capella degli Scrovegni em Pádua, norte da Itália, pouco ao sul de Veneza, significam esse passo à frente na pintura ocidental. Consagrada para uso em 1305, as paredes do interior da capela são revestidas de cenas das vidas de Maria e de Jesus, incluindo até a cena do Juízo Final, com o teto representando o céu. Ou melhor, o Céu. O azul é elemento fundamental nessa representação. E, até àquele momento, inédito como pigmento utilizado em afrescos naquela tonalidade e intensidade. Junte-se a isso a técnica naturalista-realista no traço escultórico de Giotto, outra novidade para a pintura medieval, e temos o que é considerado uma das obras-primais mais significativas da arte ocidental. 

Penso que a arte representa hoje um dos principais elos de intercâmbio, de troca cultural não-hegemônica entre ocidente e oriente. Em épocas passadas também foi ela, somada ao conhecimento técnico, a filosofia, a convidar para o diálogo tradições tão diversas. Não sei se os idealizadores da Bienal de Arte de Veneza pensaram nisso quando escolheram "la serenissima" para sediar, em 1895, sua primeira edição. Importa saber ter sido uma escolha feliz, adequada ao perfil de integração e pluralidade ao qual o evento de propõe. E ao qual a história de Veneza comprova ter sido também sua vocação.

Séculos mais tarde, Picasso e Yves Klein serão eternamente gratos pelo azul ultra-marino (continua...).
O juízo final.
O massacre dos inocentes.
Crucificação.
A traição de Judas, considerado o afresco de maior efeito dramático e o mais refinado e ousado em termos das técnicas empregadas por Giotto.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

bens confiscados...

Objetos de uso quotidiano confiscados de famílias judias pelos nazistas, no período entre 1941 e 1945, e posteriormente depositados no Museu Judaico Central de Praga. As fotos feitas por Christian Boltanski são do início dos anos 1990.
"Uma Cidade Sem Passado" é um filme alemão de 1990 sobre a pesquisa de uma jovem estudante a respeito do impacto do nazismo sobre sua pequena aldeia na Bavária. Sem entender, no começo, onde estava se metendo, a jovem começa a sofrer não apenas resistência dos moradores de Pfilzing, sua cidade natal, como também a hostilidade de uma gente temerosa da ameaça de passado redescoberto (daí o título do filme).

Sonja, a garota que insiste em escrever o ensaio para a escola, descobre, aos poucos, o tanto de participação surda que o silêncio obstinado dos habitantes de Pfilzing escondia sobre a perseguição nazista aos judeus na época da II Grande Guerra, e o quanto seu entorno, a cidade em que ela cresceu, buscava lhe roubar o direito de saber sobre o ocorrido. Uma das revelações mais decepcionantes para a jovem foi tomar conhecimento da quantidade de objetos de arte, utensílios domésticos, de porcelana, de prataria, roupas, que haviam sido confiscados das casas judias antes que seus moradores fugissem ou fossem deportados ou mandados para campos de concentração. Saber que aquela suposta jóia de família pertenceu, na origem, a outra família, era entrar em contato com um nível de impostura, de mentira, até então nunca acessado pela menina.
Saca-rolhas e livros inventariados em 1973, na cidade de Baden Baden, Alemanha, confiscados, entre outros objetos, de uma mulher judia.
"Sachlich", que pode ser traduzido, do alemão, como "aquilo que é objetivo", "objetivamente", é o título de uma das quatro partes da pesquisa do artista francês Christian Boltanski sobre lugar, memória e perda. Centrada nos objetos pertencentes aos judeus e confiscados pelo exército e polícia nazistas, eles foram posteriormente encontrados em museus, esgotos, casas, igrejas e cemitérios espalhados pela Europa Central. No início dos anos 90, Boltanski iniciou o processo de registro fotográfico desses objetos, feitos "naturezas-mortas", objets trouvés os quais, em sua aparente banalidade e opacidade, remetem-nos a um diálogo com um momento histórico recente, trágico e obscuro. Com uma fixação nessas espécies de relíquias de guerra, as imagens de Boltanski suscitam ambivalências - relações de tensão entre lembrança e esquecimento, entre singularidade e indiferença, efemeridade e permanência, entre força e abatimento.

Pode-se pensar a obra de Boltanski como um olhar melancólico sobre o passado e a memória. Entretanto, tenho mais afinidade com a própria definição do artista sobre seu trabalho: o absurdo e a tolice da existência dos objetos quotidianos na vida dos indivíduos - no caso, destroços e restos de um quotidiano; ou, mais além, um quotidiano destroçado. Como se, ao falarem, tais objetos denunciassem simplesmente quão mais fácil é estar morto do que vivo. 
Camiseta de Francis C., o retratado, encontradas em 1972.
Objetos encontrados nos esgotos de Zurique, Suíça, em junho de 1994.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

olhar de peixe morto...


Olhar de peixe morto. Olhar triste, sem brilho. Olhar parado, fixo. Olhos de cabra morta, lânguidos, sem expressão. Olhos de mormaço, de ressaca, os mesmos de Capitu. Langorosos, de pálpebras semi-cerradas. Olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Olhar de gata morta. De Twiggy, Marlene Dietrich. De ícone russo. Olhar de mangá. 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

cinema e política...

A Palma de Ouro de Melhor Filme foi concedida ao diretor Abdellatife Kerchiche e também às atrizes Léa Seydoux e Adele Exarchopoulos, por "A Vida de Adele", adaptação livre da HQ "Blue is the Warmest Colour".
Saíram os premiados do Festival de Cannes de 2013. A cerimônia de encerramento foi ontem. Como de costume, houve uma diluição dos prêmios entre os concorrentes mais cotados, uma espécie de acordo de damas e cavalheiros entre os membros do júri, uma vez que o consenso é algo muito improvável de se atingir quando há uma seleção competitiva de longas os mais distintos em termos de origem, gêneros e poéticas. 


Os vencedores - isso mesmo, no plural - foram o diretor tunisiano radicado francês Abdellatife Kerchiche mais as duas atrizes protagonistas de seu filme, Adele Exarchopoulos e Léa Seydoux. Baseado na história em quadrinhos de nome "Blue is the Warmest Colour", "La Vie D'Adele" é um filme de quase 3 horas, sobre os ritos de passagem de duas garotas de meios distintos, em Lille, norte da França - Adele, da classe média-baixa - e Emma - de um ambiente rico e intelectualizado. Ambas têm vocações muito fortes - ensinar (Adele) e pintar (Emma). Ambas descobrem a sexualidade e o amor juntas, numa história que, de acordo com os críticos e jornalistas que cobriram o festival, não tira sua força da originalidade do tema, mas sim da forma intimista e realista pela qual ela é abordada. Aqui, a atuação das duas atrizes foi considerada fundamental, assim como o naturalismo do olhar de Kerchiche (em 2007, o mesmo diretor foi premiado com o Leão de Ouro em Veneza por "O Segredo do Grão").

Claramente havia filmes com chances semelhantes a "A Vida de Adele" de levar a "Palma de Ouro". Pouco importa; alguém tem que sair ganhando nesses casos. E, pelo que li, não se perpetrou nenhuma injustiça. O que mais me chamou a atenção foi o julgamento que muitos jornalistas, sobretudo europeus, fizeram de Steven Spielberg como presidente do júri da edição do festival nesse ano. Como se fosse um diretor norte-americano "bitolado", de uma única vertente, realizador de blockbusters de grande sucesso de bilheteria. Sempre bom lembrar que Spielberg faz parte da primeira geração de cineastas e produtores de Hollywood formados em cinema, na década de 70 - assim como ele, Martin Scorsese e Francis Ford Coppola. Num momento em que Hollywood precisava de sangue novo e histórias com temas até então já esquecidos ou negligenciadas pela indústria. Aquela geração foi a responsável por introduzir sexo, drogas, política, terror, e rock'n'roll ao cinema mainstream norte-americano.

E tem outra: Spielberg sabe a diferença entre o Oscar e Cannes. Assim como sabe que um filme, mesmo tendo o seu nicho de público, deve apresentar critérios mínimos de coerência interna de narrativa, fotografia, atuação. Ele é um profissional do cinema tanto quanto Kerchiche o é. Sobe ainda mais no meu conceito por ter contribuído para a escolha de um filme que fala de amor, de vocação profissional, de sexo, da condição homossexual e da condição feminina, sem que nada disso seja tratado em separado como bandeira política. Pois se a arte - mesmo que seja a indústria cinematográfica - não se mesclar à política sem abandonar a poética, não ousar junção de forma e conteúdo, não provocar alguma reação no público, então pra quê? 

(em tempo: numa entrevista dada ao "the upcoming", Kerchiche, questionado pelas longas cenas de sexo explícito do casal protagonista, responde: "não há revolução completa se não há revolução sexual"...).
O júri do Festival de Cannes 2013, presidido por Steven Spileberg.
E, aleatoriamente, uma atriz e diretora do coração - do meu - Asia Argento, que entregou o prêmio de melhor roteiro. 

domingo, 26 de maio de 2013

assim é se lhe parece...

Capa da primeira reimpressão de "Mongólia", ganhador do Prêmio Jabuti de melhor romance em 2004.

Foto de família nômade mongol tirada por Bernardo Carvalho no período em que o escritor viajou pelo país.
Uma das qualidades dos romances escritos pelo jornalista e escritor carioca Bernardo Carvalho é a pesquisa a qual ele se dedica para construir suas narrativas. Não falo aqui de pesquisa apenas no senso mais estrito, falo também da pesquisa de campo, da experiência vivida como sujeito, que depois se transforma em autor. 

Assim como na história de outros de seus livros, "Mongólia" (2003) é um romance que resulta de uma estadia de 2 meses do escritor naquele país, financiado por uma bolsa de criação literária da Fundação do Oriente, de Lisboa. Com a ajuda de dois guias-intérpretes e dois motoristas, que se revezaram ao longo dos cinco mil quilômetros percorridos, Carvalho não tinha exatamente o compromisso de escrever uma narrativa ficcional, o formato final de "Mongólia". Poderia ter sido um ensaio, ou vários deles, ou um relato de viagem, ou um conjunto de poemas talvez inspirados pelo contato com o budismo, com a cultura nômade, com uma Mongólia que nos é vendida usualmente como uma paragem intocada, ainda preservada, idílica. 

E aqui está o núcleo rígido da obra: o resultado de uma enorme decepção, de um choque cultural imenso, a quase impossibilidade de um ocidental, feito qualquer um de nós, de penetrar e entender o que é a cultura oriental de um país como a Mongólia. Um país que viveu por 70 anos uma das ditaduras comunistas mais violentas do mundo e que, após a sua queda, retomou o budismo com força total e poder absoluto, como símbolo de uma liberdade a qual aquele conjunto de povos e etnias talvez jamais tenha conhecido. 

Porque não há a figura do indivíduo na Mongólia de Bernardo Carvalho. Apenas natureza - montanhas, desertos, vales, lagos -, e uma natureza cruel, pelada, quase sem árvores, uma paisagem que, segundo um dos personagens, é o reflexo exato do céu, onde nada se deixa registrar. 

Do desencantamento com o Oriente e sua cultura, dessa impossibilidade de diálogo, nascem os conflitos dos personagens de "Mongólia". São 3 relatos sobrepostos - um diplomata aposentado, no Rio de Janeiro, escreve, a partir de diários e anotações, sobre a busca de um subordinado seu, apenas chamado de o "Ocidental", quando ambos serviam ao Itamaraty em Pequim, por um jovem fotógrafo brasileiro que havia se perdido, àquela época, no interior da Mongólia. Essa viagem de busca pelo desaparecido dá-se em 3 camadas - há as anotações do fotógrafo, entregues ao Ocidental pelos guias que ajudaram-no em suas incursões pelo país; há os diários do Ocidental sobre a sua viagem atrás do fotógrafo sumido; e há a costura da história dessas buscas, feita pelo diplomata aposentado, cujo desejo de ser escritor cumpre-se naquele momento, numa espécie de ajuste de contas moral com seu ex-subordinado, recém-assassiado numa favela do Rio. 

A narrativa é intrincada, cheio de desvios e desvãos. Mas não há trapaça. Em nenhum momento os personagens de "Mongólia" se colocam como donos da verdade (e, consequentemente, nem o próprio autor). A raiva, a indignação, os sentimentos que os movem advêm dessa incomunicabilidade, da tentativa de não se resignar a uma realidade que se impõem a eles como impenetrável, fanstasmagórica. Eles só desejam se reconciliar consigo mesmos, acreditar num projeto autoral, de indivíduo, libertário, projeto esse que nenhum manual de auto-ajuda (ou, no caso, de um retorno ao "mito do bom selvagem") vai nos indicar a como colocá-lo em prática. Nesse caso, só a experiência de cada um. 

Muito provavelmente, se você for à Mongólia, vai enxergar coisas que a "Mongólia" de Bernardo Carvalho não captou. Afinal, você é o autor daquilo que vê. 

sábado, 25 de maio de 2013

a pintura afetiva...

Autorretrato com pintura da série "Escócia", fotografada por Roo Lewis em 2013.
A morte da minha avó materna, há 12 anos, acelerou um processo, já iniciado anteriormente, quando ela não podia mais morar sozinha, de divisão dos objetos que também habitaram, pelo mesmo período, a casa em que ela vivera por mais de 5 décadas. Móveis, tapetes, lustres, espelhos, quadros, esculturas, porcelana, fotografias - muitas fotografias -, uma coleção de coisas herdadas e adquiridas por ela e meu avô. 

Eu adorava aquela casa. Absolutamente tudo nela. O jardim era imenso. Um alpendre também espaçoso, onde costumávamos passar as tardes, quando eu ouvia as conversas de minha avó e suas irmãs, suas cunhadas, minhas tias, mãe, meus primos e primas. E a casa em si, tudo o que pertencia a ela; parecia que tudo havia sido milimetricamente planejado para ocupar aquele espaço. 

Apesar da notória prevalência feminina, o mundo dos objetos dizia mais sobre o meu avô do que sobre ela; afinal, havia sido ele o colecionador da maioria do que ali esteve, quem projetara e construíra a casa, quem, durante viagens, trouxera debaixo dos braços bustos de mármore, espelhos venezianos, pinturas feitas a seu pedido de pescadores do sul da Itália (lembro-me perfeitamente dessas pinturas; costumava explorar o interior daquela casa como que maravilhado, à espera de uma nova surpresa, como quando descobri, no verso do quadro dos pescadores, uma foto puída, em preto e branco, feita por meu avô no momento do registro). 

Havia também um quadro enorme, muito curioso, encimando o sofá maior da sala de estar. Ele tinha medidas de quadro de museu, era bem grande, com molduras rebuscadas. Por muito tempo me perguntei por que justamente aquela tela ocupava tamanho destaque. Era uma pintura sombria. Retratava uma cena doméstica inusitada. Uma moça, em cima de um banquinho, com gestos de assustada, e outra, no canto esquerdo, agachada, vassoura em punho tentando caçar o que deveria ser um rato, o motivo do pavor da moça em primeiro plano (confesso que descrevo o que me lembro, o que se fixou na minha memória; outros detalhes ou figuras do quadro me escapam). 

As pinturas do que não existe mais da casa dos meus avós espalharam-se pelos descendentes. Vez ou outra me deparo com um deles na casa de meu irmão, de uma prima. Já não pertencem mais a um mundo conhecido, familiar; estão em outro contexto, pelo menos para os meus olhos (aqui não vai nenhum juízo de valor negativo). Apenas não sinto mais por eles o mesmo afeto que tinha quando todos encontravam-se reunidos no espaço afetivo de casa de avó. Porque o que me fazia achar beleza neles era isso, o caráter de pertencer àquele lugar, de compor uma atmosfera que me trazia aconchego, independentemente de qualidade artística ou avaliação estética. Não se costuma dizer que a beleza está no olhar de quem vê? 
Edie Campbell por Peter Lindbergh: lembrar daquela casa me suscita uma atmosfera parecida.
   

sexta-feira, 24 de maio de 2013

pobre diabo...

"Reality" (2012), de Matteo Garrone, valeu ao diretor italiano, pela segunda vez, o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cinema de Cannes.  O primeiro Grande Prêmio foi concedido a "Gomorra" (2008).

No meu hábito recorrente de associações ininterruptas, ao terminar de assistir a "Reality" (2012), mais recente trabalho do diretor italiano Matteo Garrone, o mesmo de "Gomorra" (2008), logo me vem à cabeça um personagem de Dostoiévski, daqueles tragicômicos, que entram numa jornada íntima de loucura apática, de alienação e recusa às desilusões. Assim enxerguei a trajetória do ingênuo e simples Luciano, um peixeiro que vive com sua grande família em Nápoles, daquelas caricatas mesmo, com direito a avós, tios, tias, sobrinhas, filhos, vizinhos, todos sempre juntos, falando alto, discutindo, metendo-se um na vida do outro.

Junto com a mulher, Luciano também tira um troco a mais para o sustento da família por meio de pequenos golpes com mercadoria contrabandeada. Tudo bem, afinal estamos em Nápoles. E tudo bem até aqui, pois, nesse caos aparente, Luciano encontra a segurança necessária para levar a vida. 

Até que, numa festa de casamento, ele conhece Enzo, um ex-Big Brother (Grande Fratello, na versão italiana) que sobrevive de ser celebridade de quinta categoria a esquentar eventos "meia-boca". Estamos no início do filme, numa cerimônia de casamento mais próxima de um misto de Família Adams com Rock Horror Show. Luciano está, ele próprio, trajado de drag queen, e encanta-se com atenção que a fama de instant-celebrity proporciona a Enzo. "Never give up", "nunca desista", Enzo repete ad nauseum percorrendo o grande salão de festas, seguido por um Luciano hipnotizado. Daí a ser incentivado por toda a família a se inscrever na próxima edição do "Grande Fratello" é um pulo. Assim como de súbito, depois da primeira entrevista nos estúdios da CINECITTÀ em Roma, Luciano decide vender sua banca de peixes e apostar todas as fichas na perspectiva de "entrar na casa". 

Volto com Dostoiévski: o ritmo da construção do personagem de Luciano, a guinada em sua vida que o sonho e a expectativa de participação no reality show trazem, a agilidade das sequências inciais, compatíveis com a euforia do protagonista, combinadas à posterior desconstrução tragicômica desse sonho, retratada em sequências mais estendidas, remetem-me ao estilo e aos personagens do escritor russo. Embalado pela empolgação, por uma súbita febre interpretada por Luciano como uma espécie de iluminação, um sentido verdadeiro para sua vida, o protagonista embarca num delírio sem volta.

E mais uma vez Dostoiévski, "na terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas, com o intuito de rir, aqui não vamos mentir". Garrone segue esse aforisma ao pé da letra. Antagonicamente ao violento e cru "Gomorra", o registro de "Reality" é o da comédia, da fantasia. Porém, uma comédia negra, uma fantasia decepcionada pela verdade do mundo cruel das aparências. Não se trata mais da comédia pelo riso, do sonho pelo prazer. Trata-se da comédia pelo drama, o sonho como caminho para a loucura. Pobres diabos, esses de Garrone e aqueles de Dostoiévski.
Luciano (Aniello Arena), já no auge de sua obsessão, fingindo estar no "confessionário" do "Grande Fratello" dentro do closet de sua casa.
PS. A atuação de Aniello Arena, que vive Luciano, foi comparada por muitos críticos à de um jovem Robert De Niro. De fato, sua interpretação é contundente, empática com o espectador. Curiosamente, num filme que fala sobre a confusão entre vida real e ilusões, importa lembrar que Arena é um ex-pistoleiro da máfia napolitana, que cumpre prisão perpétua por um triplo homicídio no qual tomou parte em 1991 contra uma gangue rival. Saiu da cadeia apenas para filmar "Reality" - Garrone o descobriu no grupo de teatro da prisão de Nápoles quando filmava "Gomorra". Irônica coincidência com seu Luciano. Pobre diabo.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

eu não estou lá...

Os 6 atores que representam a vida e a personagem pública de Bob Dylan, no cartaz original do filme, de 2007. Cate Blanchett foi indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por sua atuação. Ao lado dela, no canto inferior esquerdo Heath Ledger.
"Eu não estou lá" é o título do longa-metragem de Todd Haynes, baseado na vida e obra do cantor e compositor norte-americano Bob Dylan. 6 diferentes atores representam 6 aspectos da história e das canções de Dylan. Ele, mesmo, nunca está lá. 

Títulos são desprezados muitas vezes. Assim como os créditos, a apresentação de um filme, a capa de um álbum ou a moldura de uma tela. Mas vamos nos concentrar apenas no título. Quando um artista denomina uma obra "sem título", da duas, uma. Ou se trata de uma peça pertencente a um série, a um conjunto, em que o todo é o que dá coerência, o conceito que substitui o título; ou é mesmo um pouco caso com a própria obra. Digo isso porque penso que títulos, nomes, são importantes (óbvio que me incomoda profundamente ver uma pintura abstrata, sem conceito ou composição, denominada "O Mito de Sísifo Encontra O Minotauro no Labirinto"; isso me remete àqueles concursos de fantasia nos carnavais de antigamente, em que todas as fantasias na categoria luxo tinham um título apoteótico e, no fim, um era igual ao outro, assim como as fantasias: uma profusão de penas e paetês). 

"I'm not there". "Eu não estou lá", este título diz muito sobre o filme. Sobre como Bob Dylan já virou um personagem, um mito; uma figura que não carece mais de uma identificação unívoca para que seja evocado - todo seu repertório de canções, de vivências, de estilo, tudo isso prescinde de sua presença. Ele não está lá porque não precisa mais estar. Não faz mais sentido.
Os trabalhos da fotógrafa canadense radicada em Chicago Laura Letinsky retratam um conceito análogo de ausência, de falta. Aqui, pego os exemplos de duas de suas séries: "Manhã e Melancolia" (c. 1997-2001) e "Eu Não Me Lembrei Que Havia Esquecido" (c. 2002-2004). 

Os títulos são chave para uma compreensão mais acurada e poética das fotografias de Letinsky. Temos cenários como "naturezas mortas" sob uma luz intensa da manhã; mesas com restos de comida, com toalhas manchadas, utensílios domésticos. Evocações da presença de muitas pessoas reunidas, de uma festa, uma refeição compartilhada. Só que estamos no dia seguinte. Não há mais convidados, amigos, familiares, apenas seus vestígios, o lixo e a bagunça que o anfitrião preguiçoso - ou talvez triste pelo fim da festa - ainda não limpou. 

"Morning and Melancholia", segundo Letinsky, é um jogo de palavras, uma alusão a "Mournig and Melancholia" ("Luto e Melancolia"), um texto clássico de Freud sobre as respostas humanas à perda. Já "Eu Não Me Lembrei Que Havia Esquecido" refere-se a uma citação de Santo Agostinho, em suas memórias, em que o santo finaliza, dizendo, que "ninguém poderia jamais dizer que eu não me lembrei que havia esquecido". Como se fosse a marcação de uma ausência dupla: não se lembrar e esquecer. Letinsky relata que ficou cerca de 3 anos sem ouvir música enquanto dirigia, até quando sintonizou o rádio do carro numa FM, e então recordou dos CD's largados ali no porta-luvas. A sensação, segunda ela, foi a de ter bebido água quando se está com muita sede: como, afinal de contas, ela não se lembrava que havia esquecido que gostava tanto de música?

Penso que conseguimos lidar com a ausência, a falta, quando a elaboramos por meio de índices, registros e marcas daquilo que aquela presença nos deixou. Como herança, como exemplo, como sentimento vivido. Bob Dylan é um ícone tão representativo na cultura pop ocidental que já virou metonímia; não precisamos mais dele, de sua presença; apenas assobiamos "Blowin' In The Wind". Já os restos e vestígios de pessoas reunidas, se divertindo, nas fotos de Laura Letinsky, nos faz pensar nesse interstício, nesse tempo no meio, no vazio, em que estamos ainda de luto, sem mexer uma palha para limpar e organizar os rastros daqueles que não estão mais presentes. Aqueles que não estão mais ali. E cuja ausência nos faz lembrar como comumente nos esquecemos de quanto a presença deles costuma ser boa, prazerosa.