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sexta-feira, 31 de maio de 2013

o azul veio do nascente...

Fachada da Capella degli Scrovegni, em Pádua, na região do veneto, Itália.
A fachada modesta esconde o interior repleto de afrescos de autoria de Giotto, nos quais foram utilizados, de uma só vez, o azul ultra-marino trazido pelos mercadores de Veneza sob a forma da gema do lapis lazuli de origem afegã, e os avanços do realismo escultórico característico do traço do artista. 
Amanhã está aberta oficialmente para o público a 55a. Bienal de Arte de Veneza. Até 24 de novembro, a mais importante bienal de arte contemporânea exibirá, além dos pavilhões nacionais de 88 países - número recorde -, uma mostra especial, denominada "O Palácio Enciclopédico", uma espécie de museu imaginário contendo representações de grandes descobertas da humanidade, a qual o curador Massimiliano Gioni optou por conceber como uma leitura antropológica do estudo da imagem, "apagando limites entre artistas profissionais e amadores, entre quem faz parte do sistema da arte e quem não faz" (citando o próprio Gioni).

Se Veneza hoje é um santuário da arte contemporânea produzida ao redor do mundo, a "repubblica serenissima" sempre desempenhou esse papel de centro convergente da divisão milenar feita entre ocidente e oriente. Veneza, como cidade-estado e principal pólo comercial da Europa no final da Idade Média, foi a guardiã do sincretismo artístico, da fusão entre leste e oeste. Seja na culinária, na arquitetura, como nas artes em geral. Na pintura, por exemplo, por ter sido a primeira parada, no ocidente, de uma pedra denominada lapis lazuli, de origem afegã, matriz do pigmento azul intenso, o chamado azul ultra-marino, até então fora da paleta de cores dos exemplos conhecidos de pintura grega, romana ou mesmo da baixa Idade Média. 

A introdução do azul na pintura ocidental, do azul real, intenso, é considerada uma verdadeira revolução na arte ocidental, a apropriação técnica de uma cor cujo simbologia remete à transcendência e espiritualidade máximas, como o azul do mar, o céu, o horizonte, o azul da melancolia, dos sonhos, dos sentimentos mais íntimos. E, dentre os artistas daquele tempo, o arquiteto e pintor Giotto di Bondone foi o pioneiro na aplicação do novo pigmento na pintura do final do século XIII, início do século XIV. Estamos falando de uma época pré-renascimento italiano, quando as características mais importantes daquela escola ainda estavam sendo gestadas. 

Os afrescos de Giotto que compõem o conjunto artístico e arquitetônico da Capella degli Scrovegni em Pádua, norte da Itália, pouco ao sul de Veneza, significam esse passo à frente na pintura ocidental. Consagrada para uso em 1305, as paredes do interior da capela são revestidas de cenas das vidas de Maria e de Jesus, incluindo até a cena do Juízo Final, com o teto representando o céu. Ou melhor, o Céu. O azul é elemento fundamental nessa representação. E, até àquele momento, inédito como pigmento utilizado em afrescos naquela tonalidade e intensidade. Junte-se a isso a técnica naturalista-realista no traço escultórico de Giotto, outra novidade para a pintura medieval, e temos o que é considerado uma das obras-primais mais significativas da arte ocidental. 

Penso que a arte representa hoje um dos principais elos de intercâmbio, de troca cultural não-hegemônica entre ocidente e oriente. Em épocas passadas também foi ela, somada ao conhecimento técnico, a filosofia, a convidar para o diálogo tradições tão diversas. Não sei se os idealizadores da Bienal de Arte de Veneza pensaram nisso quando escolheram "la serenissima" para sediar, em 1895, sua primeira edição. Importa saber ter sido uma escolha feliz, adequada ao perfil de integração e pluralidade ao qual o evento de propõe. E ao qual a história de Veneza comprova ter sido também sua vocação.

Séculos mais tarde, Picasso e Yves Klein serão eternamente gratos pelo azul ultra-marino (continua...).
O juízo final.
O massacre dos inocentes.
Crucificação.
A traição de Judas, considerado o afresco de maior efeito dramático e o mais refinado e ousado em termos das técnicas empregadas por Giotto.

sábado, 25 de maio de 2013

a pintura afetiva...

Autorretrato com pintura da série "Escócia", fotografada por Roo Lewis em 2013.
A morte da minha avó materna, há 12 anos, acelerou um processo, já iniciado anteriormente, quando ela não podia mais morar sozinha, de divisão dos objetos que também habitaram, pelo mesmo período, a casa em que ela vivera por mais de 5 décadas. Móveis, tapetes, lustres, espelhos, quadros, esculturas, porcelana, fotografias - muitas fotografias -, uma coleção de coisas herdadas e adquiridas por ela e meu avô. 

Eu adorava aquela casa. Absolutamente tudo nela. O jardim era imenso. Um alpendre também espaçoso, onde costumávamos passar as tardes, quando eu ouvia as conversas de minha avó e suas irmãs, suas cunhadas, minhas tias, mãe, meus primos e primas. E a casa em si, tudo o que pertencia a ela; parecia que tudo havia sido milimetricamente planejado para ocupar aquele espaço. 

Apesar da notória prevalência feminina, o mundo dos objetos dizia mais sobre o meu avô do que sobre ela; afinal, havia sido ele o colecionador da maioria do que ali esteve, quem projetara e construíra a casa, quem, durante viagens, trouxera debaixo dos braços bustos de mármore, espelhos venezianos, pinturas feitas a seu pedido de pescadores do sul da Itália (lembro-me perfeitamente dessas pinturas; costumava explorar o interior daquela casa como que maravilhado, à espera de uma nova surpresa, como quando descobri, no verso do quadro dos pescadores, uma foto puída, em preto e branco, feita por meu avô no momento do registro). 

Havia também um quadro enorme, muito curioso, encimando o sofá maior da sala de estar. Ele tinha medidas de quadro de museu, era bem grande, com molduras rebuscadas. Por muito tempo me perguntei por que justamente aquela tela ocupava tamanho destaque. Era uma pintura sombria. Retratava uma cena doméstica inusitada. Uma moça, em cima de um banquinho, com gestos de assustada, e outra, no canto esquerdo, agachada, vassoura em punho tentando caçar o que deveria ser um rato, o motivo do pavor da moça em primeiro plano (confesso que descrevo o que me lembro, o que se fixou na minha memória; outros detalhes ou figuras do quadro me escapam). 

As pinturas do que não existe mais da casa dos meus avós espalharam-se pelos descendentes. Vez ou outra me deparo com um deles na casa de meu irmão, de uma prima. Já não pertencem mais a um mundo conhecido, familiar; estão em outro contexto, pelo menos para os meus olhos (aqui não vai nenhum juízo de valor negativo). Apenas não sinto mais por eles o mesmo afeto que tinha quando todos encontravam-se reunidos no espaço afetivo de casa de avó. Porque o que me fazia achar beleza neles era isso, o caráter de pertencer àquele lugar, de compor uma atmosfera que me trazia aconchego, independentemente de qualidade artística ou avaliação estética. Não se costuma dizer que a beleza está no olhar de quem vê? 
Edie Campbell por Peter Lindbergh: lembrar daquela casa me suscita uma atmosfera parecida.
   

quarta-feira, 22 de maio de 2013

a diferença entre ouvir e escutar...

Instalação site-specific de 2008 no Museu de Arte Contemporânea de Santa Mônica, concebida pelo artista norte-americano Michael Asher: coerência de uma trajetória como crítico e professor que sempre estimulou seus alunos a questionar o espaço físico dos museus e galerias.
Se você faz sua arte por puro deleite e degustação própria, o que vem a seguir pode não lhe interessar. No mínimo, não lhe cabe, pois não deve ser uma preocupação. 

Porém, se você tem alguma intenção de, um dia, participar de editais de artes visuais, ser selecionado por um deles, expor numa coletiva, ou entrar num salão de arte de certo peso, isto é, ganhar dinheiro e/ou reconhecimento por sua obra, bem-vindo ao mundo da arte e suas especificidades. 

Se você não fez uma graduação em artes visuais, seguramente você compareceu a cursos livres de técnica - desenho, pintura, escultura - e de história da arte. Ou ainda de algum grupo de acompanhamento e análise de portfólios de artistas, onde outros artistas, como você, mais um curador/professor/crítico de arte, comentam o conjunto da sua obra não apenas a partir do que eles vêem e observam, mas também em relação à coerência do seu discurso de artista - o chamado "art statement" - vis-à-vis o trabalho mostrado.

No livro "Sete Dias no Mundo da Arte", já comentado aqui no blog, Sarah Thornton escreve um capítulo específico sobre uma aula de crítica e análise de portfólio no consagrado California Institute of the Arts (ou CalArts, como o instituto é carinhosamente conhecido). Ela participa de um dia de aula na turma de crítica que esteve sob o comando do artista conceitual norte-americano Michael Asher por mais de 30 anos. Trata-se de um seminário em que alunos-artistas apresentam seus trabalhos para crítica coletiva. (Asher faleceu no ano passado, uma enorme perda para o CalArts pois era um professor muito querido pelos alunos, dedicado e de espírito libertário). 
Um dos prédios que compõem a famosa CalArts, em Valencia, um distrito de Los Angeles, California.
Thornton fica admirada com o engajamento dos participantes do seminário: na aula em que esteve, dois alunos apresentaram seus trabalhos, um pintor e uma escultora - se não me falha a memória -, e chamou-lhe a atenção por quantas horas ao longo daquele dia Asher e seus pupilos ficaram encerrados dentro de uma sala parecendo um bunker, cada um deles trazendo consigo lanche, bebidas, animais de estimação, sacos de dormir, material de trabalho. Enfim, um engajamento que também se mostrava espontâneo, resultado de uma química entre a figura carismática porém reservada de Asher e os participantes do seminário. Só quando o mestre se levantou da cadeira e deixou a sala, muitas horas depois do seminário ter se iniciado, é que a turma se dispersou. Em nenhum momento, por mais que as opiniões se divergissem, houvesse divagações malucas, inseguranças por parte dos artistas que apresentaram trabalhos, questionamentos de Asher, o clima era de interação intensa entre indivíduos que sabiam por que estavam ali reunidos. 

Importante frisar que Thornton relata as observações do professor Asher como muito pontuais, o que, na sua visão, denotava uma estratégia muito mais voltada para suscitar e abrir questões e estimular o discurso de seus alunos do que meramente emitir juízos de valor. 

Infelizmente, no caso do exemplo abaixo, a artista participante de uma banca de seleção de projetos ou de algum tipo de aula de crítica de arte - não sei bem ao certo -, não reagiu muito bem aos comentários dos especialistas presentes. A menina surtou, destruiu sua própria pintura, e ainda saiu batendo a porta.

Sabemos que não é fácil escutar comentários a respeito de trabalhos autorais. Difícil, às vezes, ter a maturidade de separar o que é pessoal do que é objetivo, e, sobretudo, diferenciar os níveis de crítica e comentários. Mas se a sua opção for a de sair debaixo da chuva, segura a onda pois não fomos feitos de açúcar.
(anyway, vejam o vídeo até o final; imperdível...)



segunda-feira, 13 de maio de 2013

os percalços de uma artista-mulher...

"Retrato da Irmã da Artista em Trajes de Freira", de 1551.
Sofonisba Anguissola nasceu em Cremona em 1532. A mais velha de 7 irmãos, de família abastada, assim que demonstrou vontade e talento para às chamadas "belas artes", foi incentivada por seu pai a seguir uma educaçāo formal em história da arte e pintura. O que, à época, significava abrir uma enorme exceção, a fim de que Sofonista pudesse ser admitida como a primeira mulher-aprendiz junto aos pintores de renome de sua cidade natal.

Em 1554, Sofonisba, então com 22 anos, muda-se para Roma. Lá conhece Michelangelo - sim, o próprio - o qual comenta e critica seu trabalho, ao mesmo tempo que pede a ela que faça o mesmo com seus esboços e desenhos. 

Infelizmente era o máximo que a artista podia fazer em tempos em que mulheres não eram admitidas em estudos de nu e, portanto, jamais eram comissionadas para grandes pinturas de caráter histórico, mitológico ou religioso. Mesmo contando com o apoio do pai influente. Mesmo com um talento atestado e já reconhecido. 

Assim, Sofonisba especializou-se em retratos e estudos de natureza morta, representações de cenas quotidianas. Foi obrigada a se restringir ao ambiente familiar, da ordem estrita do gênero feminino. 

Por volta de 1558, Sofonisba já era uma pintora amplamente reconhecida nas cortes européias. Finalizando um retrato encomendado pelo Duque de Alba, em Milão, foi indicada ao rei de Espanha, Felipe II, encontro que significou um ponto de virada em sua carreira. Contratada como retratista oficial da família real espanhola, a pintora italiana passou 20 anos estabelecida em Madri. Além dos retratos, Sofonisba foi incumbida de dar aulas de pintura à jovem rainha Isabel de Valois (mais uma tarefa da ordem do feminino). 
Acima, retrato de Isabel de Valois, rainha da Espanha. Abaixo, retrato de Felipe II, o rei, executado em 1573 e, até 1996, atribuído ao pintor Sanchéz Coello.
Os anos na Espanha correspondem ao período mais fértil e produtivo da artista, quando ela, de fato, refina seu estilo, marcado pelo detalhismo e apuro na representação de tecidos, jóias, peles, enfim, uma luminosidade própria na combinação de textura e cor que conferem aos seus retratos não apenas uma sofisticação única como também um cuidado com a atmosfera em torno do retratado. 

Nesse estágio, o trabalho de Sofonisba esbarra em mais um entrave: por conta da qualidade de suas obras, muitas delas foram confundidas com as de outros artistas homens da época, como Ticiano e El Greco (neste último caso, o quadro abaixo "A Dama de Arminho", de 1580, foi considerado de autoria do pintor greco-espanhol por um longo período). 
Sofonisba voltou à Itália em 1578, casou-se duas vezes, e morreu em Palermo, aos 93 anos. Em 1623, um jovem pintor flamengo chamado Anthony Van Dyck fez uma visita à pintora, já com 90 anos. Van Dyck iniciou um esboço de retrato nesse encontro, finalizado um ano depois, Porém o que lhe chamou a atenção foi o fato de a artista ainda continuar a pintar apesar de sua vista já enfraquecida e cansada. 
Retrato de Sofonisba Anguissol (1624) por Anthony Van Dyck quando de sua visita à pintora na Sicília.

Atualizando a história de Sofonisba Anguissola para os dias de hoje, observamos que apenas no início do século XX as mulheres-artistas (ou artistas-mulheres) começam a ter expressividade maior no mundo das artes. Até então, seu acesso ao círculo de movimentos artísticos, de escolas, de exposições e, sobretudo, ao reconhecimento como profissional era extremamente restrito. São inúmeros os casos de obras que foram executadas por artistas-mulheres e assinadas por homens, seja por apropriação indevida, seja para que elas tivessem possibilidade de venda e aquisição por parte de um museu ou colecionador num mundo onde a legitimidade da obra executada por uma mulher não existia. 

Em maio agora, o CCBB-RJ abre uma exposição com obras de 65 artistas mulheres, datadas de 1907 até os dias de hoje. Trata-se de uma exibição organizada pelo Centre Georges Pompidou, com obras de seu acervo, em cartaz em Paris em 2010.

Quando fazemos a contabilidade nas bienais e nos acervos dos museus de arte moderna e contemporânea, deparamo-nos com números impressionantes: apenas 4% desses acervos é composto por obras de autoria de artistas mulheres. E, nas duas últimas bienais de São Paulo, menos de 1/4 dos artistas exibidos eram mulheres. 

Sem tocar no tema de uma arte "feminina" ou mesmo "feminista", ressalto um aspecto antropológico ainda presente nas sociedades ocidentais, mesmo pós-dominação capitalista, onde a igualdade de gêneros se dá pelo denominador comum do dinheiro. O mundo do trabalho ainda é um mundo dos homens. Ainda é cobrado mais reconhecimento profissional deles. Às mulheres não é furtado o direito do fazer artístico, mas até que ponto não resiste um ranço de ambiente doméstico para essa arte, um espaço privado apenas. Daí a visceralidade e a contundência da arte de muitas mulheres, o desejo de transpor a barreira do privado, de superar a repressão para a afirmação pública.

Por último: que falta fazem, ainda nos dias de hoje, pais como o de Sofonisba, homens que avalizem e conduzam a saída de suas filhas da redoma edípica materna para o mundo, do espaço meramente privado para uma atuação pública... 


quarta-feira, 8 de maio de 2013

livros de amigos...

Em latim "alba amicorum". Tradução: álbum ou livro de amigo, uma tradição surgida na Holanda do século XVI no meio universitário, na qual professores, alunos, nobres e artistas compartilhavam textos, poemas, escritos esparsos, desenhos, mensagens numa espécie de diário coletivo.
Cada membro de uma congregação, associação ou universidade tinha seu próprio álbum, com capas luxuosas, no qual escreviam ou desenhavam aqueles com os quais se queria mostrar ou reafirmar uma conexão de amizade, uma filiação, um laço. O objeto livro, aqui, era único não apenas pelo seu conteúdo "customizado", mas também pelo que ele representava em termos de status social.
Um álbum de amigo com desenhos de brasões da nobreza ou escritos de acadêmicos demonstrava que seu proprietário ocupava um ranking elevado na escala social da época, símbolo do meio pelo qual circulava e da qualidade de suas relações pessoais.

Agendas, diários, cadernetas de anotações e esboços, livros de artistas, todos são, em maior ou menor grau, versões atualizadas dos álbuns de amigos. Versões mais empobrecidas, na medida em que o objeto em si perdeu sua aura anterior de sentimento de pertencimento a um determinado estrato social, intelectualizado e nobre. Esse objeto adquiriu um caráter privativo, de interesse prioritário para o autor, que nele deposita confissões e pensamentos íntimos. E, nesse sentido, o álbum de amigo da modernidade deixou de ser uma obra para o olhar do outro ou, mais ainda, de ser coletivamente concebido junto com parceiros e colegas de interesse artístico, intelectual ou de casta. 
Os álbuns de amigos são apenas um de vários exemplos de como o suporte "livro" era visto como obra de arte, além do romance ou do livro acadêmico ou de registro científico. Era um híbrido, e justamente essa hibridez é que o torna tão contemporâneo, multi-meios, transversal nas formas e poéticas possíveis de nele serem condensadas. Faço referência, aqui, a um exemplo entre tantos outros espalhados pela produção artística contemporânea. Um exemplo de "alba amicorum" - e é esse mesmo o nome da obra -, criado pela artista norte-americana Sheryl Oppenheim em 2012. Com 80 páginas e dimensões semelhantes a um livro de leitura padrão, Oppenheim valeu-se da marmorização e de tinta spray para criar um livro essencialmente decorativo, contrastando técnicas distintas a fim de mesclar o artesanal, os elementos gráficos e o pictórico. Uma referência longínqua aos livros de amigos originais. Sobretudo, uma referência ao livro como objeto de arte per se.

domingo, 21 de abril de 2013

cy twombly e a recepção da obra de arte...

Obras pinçadas de vários períodos da trajetória artística de Cy Twombly, que demonstram seu mix de desenho e pintura; suas técnicas primitivas e gestuais; o uso da caligrafia e da palavra; as repetições; o caráter rupestre e de composição oriental baseada nos vazios e num preenchimento meticulosamente desordenado do campo visual.
O nome, em si, já se refere a um garrancho, a um desarranjo visual: Cy Twombly (Cy era o apelido de Edwin Parker). Artista prolífico e de extensa carreira (nasceu nos EUA em 1928 e morreu recentemente, em 2011), teve sua obra inscrita dentro da "turma" que se contrapôs ao expressionismo abstrato norte-americano, liderada por Robert Rauschenberg e Jasper Johns. 

Porém, como a peculiaridade de sua alcunha, a obra de Cy Twombly sofreu muitos entraves e preconceitos para ser digerida. Houve sempre muitas controvérsias ao seu redor, detratores junto a defensores entusiastas. Uns, proclamando que sua obra, entre o desenho e a pintura, mais parecem riscos, borrões e rabiscos possíveis de serem reproduzidos por qualquer criança; outros, na posição contrária, como o filósofo e teórico francês Roland Barthes, enxergam um jogo muito vigoroso de transgressões plásticas e de linguagem na obra de Twombly. 

Acabo de ler um texto de Barthes sobre Twombly. De fato, como nos define a filosofia contemporânea, somos indivíduos modernos na medida que não podemos prescindir da linguagem não apenas para nos comunicar mas também para entender o mundo ao nosso redor. Os textos de Barthes trazem esse prazer de sermos modernos, tamanha a riqueza de referências, de composições e associações, de aberturas de leituras e pontos de vista. 

Barthes aborda o primitivismo e a precariedade característicos da obra de Twombly; fala dos borrões, dos traços e pinceladas intencionalmente mau feitos; da mistura de repetições, vazios e da escrita em suas composições, o que, de acordo com o pensador francês, nos causa estranhamento porque não nos remete a códigos artísticos enraizados na cultura ocidental, aos quais estamos acostumados, mas sim a um fazer artístico oriental, marcado pelos intervalos, pelo não preenchimento da tela de maneira racionalmente ordenada. Os vazios são propositais, assim como o desleixo e as repetições têm a ver com uma preocupação gestual do artista, para dar a ver ao espectador o processo e os materiais utilizados na obra. De forma análoga, os títulos dos quadros de várias séries de Twombly remetem a figuras da mitologia grega, ao romantismo do século XIX, a escritores e poetas clássicos; todavia, a representação pictórica desses títulos é deliberadamente precária, tosca, lembra o pixo, inscrições rupestres. 

Barthes levanta a seguinte questão essencial em relação a essas características do artista norte-americano: mesmo com todas suas idiossincrasias, falhas e julgamentos negativos associados, será que a obra de Twombly, assim como a de muitos outros artistas contemporâneos, não encontram sua força - e daí seu grande legado - nesse chacoalhão que dá ao espectador? Qual a razão de pintar novamente, de forma eminentemente figurativa, o mito de Leda e o cisne, se tantos já o fizeram? Quando um apreciador de uma pintura diz, "eu gostei desse quadro", será que tal juízo de valor não nos fecha para qualquer outro sentimento ou reflexão mais complexos e perturbadores? E mesmo que alguém, diante de um quadro de Twombly, diga que poderia, ele mesmo, reproduzi-lo ou refazê-lo tecnicamente melhor, a que nos serviria essa "cópia" se ela não traria mais consigo os traços que a faziam original em sua aparente incompletitude ou incompetência artística?

Esse tipo de discurso pode ser transposto à pintura abstrata, ao construtivismo, ao action-painting: pegue e faça você mesmo, pode sair melhor, mais bem acabado. Em relação a quê? A fotografia já não nos liberou da obrigatoriedade da figuração? E o papel da arte não é também trazer para o mundo do espectador, elementos, repertório, memória e lembranças que o transformem também num artista em potencial? 

Sem o esforço da reflexão, sem a tomada de tempo obrigatória requerida para qualquer forma de apreciação artística, sem Roland Barthes e suas teorias, sem o caráter essencialmente evocativo e primário da obra de Cy Twombly, sem tantas outras coisas passíveis de serem consideradas supérfluas e "castelos nas nuvens", seguramente o mundo ficaria ainda mais pretensioso e vazio. 
Fotos feitas em 1994 por Bruce Weber da casa de Cy Twombly na Itália.