segunda-feira, 13 de maio de 2013

os percalços de uma artista-mulher...

"Retrato da Irmã da Artista em Trajes de Freira", de 1551.
Sofonisba Anguissola nasceu em Cremona em 1532. A mais velha de 7 irmãos, de família abastada, assim que demonstrou vontade e talento para às chamadas "belas artes", foi incentivada por seu pai a seguir uma educaçāo formal em história da arte e pintura. O que, à época, significava abrir uma enorme exceção, a fim de que Sofonista pudesse ser admitida como a primeira mulher-aprendiz junto aos pintores de renome de sua cidade natal.

Em 1554, Sofonisba, então com 22 anos, muda-se para Roma. Lá conhece Michelangelo - sim, o próprio - o qual comenta e critica seu trabalho, ao mesmo tempo que pede a ela que faça o mesmo com seus esboços e desenhos. 

Infelizmente era o máximo que a artista podia fazer em tempos em que mulheres não eram admitidas em estudos de nu e, portanto, jamais eram comissionadas para grandes pinturas de caráter histórico, mitológico ou religioso. Mesmo contando com o apoio do pai influente. Mesmo com um talento atestado e já reconhecido. 

Assim, Sofonisba especializou-se em retratos e estudos de natureza morta, representações de cenas quotidianas. Foi obrigada a se restringir ao ambiente familiar, da ordem estrita do gênero feminino. 

Por volta de 1558, Sofonisba já era uma pintora amplamente reconhecida nas cortes européias. Finalizando um retrato encomendado pelo Duque de Alba, em Milão, foi indicada ao rei de Espanha, Felipe II, encontro que significou um ponto de virada em sua carreira. Contratada como retratista oficial da família real espanhola, a pintora italiana passou 20 anos estabelecida em Madri. Além dos retratos, Sofonisba foi incumbida de dar aulas de pintura à jovem rainha Isabel de Valois (mais uma tarefa da ordem do feminino). 
Acima, retrato de Isabel de Valois, rainha da Espanha. Abaixo, retrato de Felipe II, o rei, executado em 1573 e, até 1996, atribuído ao pintor Sanchéz Coello.
Os anos na Espanha correspondem ao período mais fértil e produtivo da artista, quando ela, de fato, refina seu estilo, marcado pelo detalhismo e apuro na representação de tecidos, jóias, peles, enfim, uma luminosidade própria na combinação de textura e cor que conferem aos seus retratos não apenas uma sofisticação única como também um cuidado com a atmosfera em torno do retratado. 

Nesse estágio, o trabalho de Sofonisba esbarra em mais um entrave: por conta da qualidade de suas obras, muitas delas foram confundidas com as de outros artistas homens da época, como Ticiano e El Greco (neste último caso, o quadro abaixo "A Dama de Arminho", de 1580, foi considerado de autoria do pintor greco-espanhol por um longo período). 
Sofonisba voltou à Itália em 1578, casou-se duas vezes, e morreu em Palermo, aos 93 anos. Em 1623, um jovem pintor flamengo chamado Anthony Van Dyck fez uma visita à pintora, já com 90 anos. Van Dyck iniciou um esboço de retrato nesse encontro, finalizado um ano depois, Porém o que lhe chamou a atenção foi o fato de a artista ainda continuar a pintar apesar de sua vista já enfraquecida e cansada. 
Retrato de Sofonisba Anguissol (1624) por Anthony Van Dyck quando de sua visita à pintora na Sicília.

Atualizando a história de Sofonisba Anguissola para os dias de hoje, observamos que apenas no início do século XX as mulheres-artistas (ou artistas-mulheres) começam a ter expressividade maior no mundo das artes. Até então, seu acesso ao círculo de movimentos artísticos, de escolas, de exposições e, sobretudo, ao reconhecimento como profissional era extremamente restrito. São inúmeros os casos de obras que foram executadas por artistas-mulheres e assinadas por homens, seja por apropriação indevida, seja para que elas tivessem possibilidade de venda e aquisição por parte de um museu ou colecionador num mundo onde a legitimidade da obra executada por uma mulher não existia. 

Em maio agora, o CCBB-RJ abre uma exposição com obras de 65 artistas mulheres, datadas de 1907 até os dias de hoje. Trata-se de uma exibição organizada pelo Centre Georges Pompidou, com obras de seu acervo, em cartaz em Paris em 2010.

Quando fazemos a contabilidade nas bienais e nos acervos dos museus de arte moderna e contemporânea, deparamo-nos com números impressionantes: apenas 4% desses acervos é composto por obras de autoria de artistas mulheres. E, nas duas últimas bienais de São Paulo, menos de 1/4 dos artistas exibidos eram mulheres. 

Sem tocar no tema de uma arte "feminina" ou mesmo "feminista", ressalto um aspecto antropológico ainda presente nas sociedades ocidentais, mesmo pós-dominação capitalista, onde a igualdade de gêneros se dá pelo denominador comum do dinheiro. O mundo do trabalho ainda é um mundo dos homens. Ainda é cobrado mais reconhecimento profissional deles. Às mulheres não é furtado o direito do fazer artístico, mas até que ponto não resiste um ranço de ambiente doméstico para essa arte, um espaço privado apenas. Daí a visceralidade e a contundência da arte de muitas mulheres, o desejo de transpor a barreira do privado, de superar a repressão para a afirmação pública.

Por último: que falta fazem, ainda nos dias de hoje, pais como o de Sofonisba, homens que avalizem e conduzam a saída de suas filhas da redoma edípica materna para o mundo, do espaço meramente privado para uma atuação pública... 


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