domingo, 21 de fevereiro de 2016

de volta para o passado...

O Urso de Ouro de melhor filme na edição encerrada ontem do Festival de Berlin foi para Fogo no Mar, um documentário sobre os refugiados chegando aos borbotões na Itália via suas ilhas no Mediterrâneo (no caso, Lampedusa). Independentemente das qualidades artísticas da obra, sem dúvida alguma, trata-se de uma declaração, um "statement" proferido pelo júri do festival sobre a violenta quanto intrincada realidade social, política e econômica que vivemos nos dias de hoje. Um mundo em colapso mais pela dificuldade de entendermos o que efetivamente pode ser feito por estados, sociedades e instituições do que pela tragédia humana a acompanhar nossa história ao longo de séculos e séculos.

É nesse mesmo contexto de fluxos migratórios compulsórios, movidos à pobreza ou belicismo contra minorias, religiões, gêneros e afins, no mesmo "melting pot" em que se dissolvem e se aquecem ininterruptamente discussões ligadas à igualdade das etnias, sexos, gêneros, transgêneros e orientações sexuais, que surgem 3 filmes independentes "pero" ditos hollywoodianos a nos remeter a essas mesmas questões mas em momentos históricos passados: "Carol", "A Garota Dinamarquesa" e "Brooklyn".

Os 3 filmes primam por uma direção de arte rebuscada, de excelência, elemento fundamental para o desenrolar de suas tramas. Pode-se alegar que se trata de uma edulcoração da contundência das histórias ali contadas, uma forma de escapismo, de diminuir o impacto ou suavizar a polêmica que os filmes abordam - o amor homossexual, o transgênero, a necessidade econômica de migrar para outro país. Em todos os casos, em tempos que não são os nossos - seja a década de 1950 no caso de Carol e Brooklyn, seja os anos 10, 20, em A Garota Dinamarquesa.


Outro elemento em comum - a meu ver - é a escolha pela linguagem melodramática para as narrativas. Todos os sentimentos, aparentemente, são vivenciados intensamente. Talvez porque se tratem de dramas profundos como a descoberta de pertencer a um corpo 'errado', em A Garota Dinamarquesa, ou o tabu relativo ao amor entre 2 mulheres, pertencentes a classes sociais tão distintas, no caso de Carol.

E aqui já tiro um pouco Brooklyn da jogada. Porque a "pobre-imigrante-irlandesa-jeca-transformada-em-it-girl-vivendo-no-brooklyn-em nova york-ao-voltar-à-sua-cidade-natal-na irlanda-e-se-ver-dividida-entre-dois-mundos-tão-distintos" convence bem pouco. É raso, pouco verossímil. Não vemos tantos dilemas morais, tantas ambições a serem conquistadas, nada que, da forma como colocada em 2015, ano de produção do filme, nos traga algum choque ou apelo. Igualmente se o filme fosse exibido em 1951-52. Quantos melodramas, comédias, filmes de ação feitos àquela época não eram muito mais transgressores e perigosos - e aí realistas, porque diziam o que no mundo quotidiano era interdito dizer - do que a saga da protagonista interpretada por Saoirse Ronan? (fala-se "sertia" como "inertia"). Vemos uma certa "sanitarização" da realidade dos imigrantes pelas lentes do diretor do filme.


A Garota Dinamarquesa é a próxima a rodar no jogo. O que dizer da impecável direção de arte, dos figurinos, da reconstituição de época das locações em tantos países diferentes? Sem hesitar, digo, é tudo muito lindo. E é aí que essa beleza seduziu meu olhar para outros cantos, outras paragens que não o cerne da história - o drama excruciante do pintor-homem que se vê obcecado em se tornar mulher, a ponto de arriscar sua própria vida num dos primeiros relatos existentes de cirurgia de mudança de sexo. Eddie Redmayne e suas personagens diminuíram-se diante de tanta beleza, beleza inclusive de Alicia Vikander e sua personagem, na medida em que ela abraça, como mulher, esposa e companheira de Einar / Lili um papel beirando a mártir, a Joana D'Arc assexuada até o final acompanhando e apoiando a saga do marido. Bem pouco verossímil igual. Da mesma forma que Lili brota feito um poço artesiano perfurando no deserto - e que começa a jorrar em 5 segundos após o furo no chão - a compaixão sem medida de Gerda traz a personagem de Vikander para o primeiro plano (e aí por que supporting actress se é ela, na minha opinião, que conduz o filme?). Muito gloss e glamour para pouca profundidade no tratamento do tema - cadê o preconceito da época, com todo seu peso? a divisão emocional, a dúvida de Einar e Lili, como se Lili tivesse chegado pra ficar de uma forma posseira, levando enxurrada abaixo o que já existia da personalidade e do gênero daquele corpo já habitado. Onde está o drama na continuidade do artista que ali sempre viveu, naquele corpo? No filme, são como 2 personas distintas. Cortadas a laser...

E eis que me derramo por Carol. Porque a beleza das atrizes, os figurinos incríveis, a direção de arte também magnífica estão organicamente amalgamadas à uma proposta de cinematografia. A qual, por sua vez, nos leva a uma proposta clara - da qual podemos discordar, mas é a mais clara e objetiva das 3 propostas dentre os 3 filmes em questão - de Bildungsroman, de realidade versus reflexo, sonho; aquela menina aparentemente tão bobinha, naïve, a Therese de Rooney Mara, demonstra abertamente suas inseguranças, suas ignorâncias mas também seus desejos, seus sonhos e ambições. E o veículo transformador, a guia a conduzi-la entre os jogos de luzes noturnos refletindo nos táxis de Nova York, é Carol - uma mulher ciente de seus poderes de sedução, carismática, elegante, culta; porém confinada a uma vida pequeno-burguesa, plena de insatisfações. A direção da trama, como o roteiro circular, que me surpreendeu no final, opera para contar uma história passo a passo, de transformação com sofrimento e alegria, de descoberta, um encaminhamento sem pieguices ou polarizações. Carol, o filme, pode chocar por sua sutileza. Pela construção de personagens que poderiam ser reais, que são reais em seus conflitos e dramas. Personagens que, porém, ao serem transportados para a tela grande, da maneira como Toddo Haynes o faz, transgridem essa realidade sem romper com ela, estabelecendo um diálogo no qual aceitamos, como espectadores, o pacto da verossimilhança. Tiramos os nossos e calçamos outros sapatos.

A beleza tem seus méritos, seus propósitos, seus artifícios. No mundo distópico em que vivemos, a sede e fome pelo belo pode tanto nos iludir ao nos conduzir ao isolamento, à um mundo raso sem diferentes perspectivas e interpretações, como também pode nos redimir da culpa de termos que ser o que não queremos ser, o que não desejamos. E aqui, beleza não é espelho, não é Narciso; beleza é reconciliação com o real, é possibilidade de realização.