quinta-feira, 5 de setembro de 2013

como o inferno são os outros...

Eis o plot de "Tese sobre um homicídio" (2013), filme argentino ainda em cartaz em São Paulo, dirigido por Hermán Goldfrid: 

O professor de direito penal Roberto Bermudez está no ápice da carreira. Seu seminário/curso na Faculdade de Direito de Buenos Aires é disputadíssimo pelos alunos, os quais nutrem por ele profunda admiração. Um certo temor até. O que reforça em Bermudez o sentimento de arrogância, um pairar superior aos demais, sejam alunos, amigos ou colegas de profissão. Até que surge Gonzalo, jovem advogado de 28 anos, filho de amigos de longa data do causídico. Também inscrito no curso de direito penal de Bermudez, Gonzalo deseja impressionar o mestre, revelar sua admiração por ele por meio do conhecimento, o que vai funcionar como brasa sobre combustível - Bermudez sente-se imediatamente ameaçado por aquele jovem, em todos os sentidos, literalmente. 

O catalisador dessa rivalidade é o assassinato de uma jovem, cujo corpo aparece estendido no estacionamento da faculdade interrompendo uma aula do mestre Bermudez. Na noite anterior, no lançamento de seu livro "A Estrutra da Justiça", o autor Bermudez e seu pupilo Gonzalo haviam discorrido sobre posições divergentes em relação à aplicação da lei, justiça e impunidade. Na noite seguinte, por conta do cadáver caído bem abaixo dos olhos de todos, o que parecia um embate pueril entre admirador e admirado transforma-se em ameaça, em conflito aberto entre dois rivais, o mais novo tentando tirar o poder do mais velho. Sentindo-se acuado, com o ego prestes a se esboroar, Bermudez revida ao encasquetar que o responsável pelo homicídio é ninguém menos do que seu pupilo e admirador Gonzalo. E para provar sua suspeita, transformada em sua cabeça em certeza, ele será capaz de entender e interpretar a realidade dos fatos da forma que lhe for mais conveniente. 

Ricardo Darín concede uma potência emocionante ao professor Roberto Bermudez. Ele sua a camisa ao longo dos 106 minutos de duração do filme. Pois o que vemos na tela é a transformação de um homem cheio de si, soberbo e inatacável, que vê sua blindagem egoica derreter. Por trás dela, surge um indivíduo solitário, com os instrumentos de afeto atrofiados, vista a energia psíquica drenada para manter um pedestal que vai se mostrando feito de barro. A alteridade inexiste para a personagem; quando aquela se mostra, é recebida como ameaça, e por isso a reação de ataque. É preciso atacar sem trégua porque qualquer reconhecimento do Outro, da diferença, é uma percepção do próprio desaparecimento, do fim da linha. 

Embora possa ser considerado um longa mainstream, se comparado a filmes realizados por Lucia Puenzo, Lucrecia Martel e Pablo Trapero, "Tese sobre um Homicídio" não é apenas um thriller policial e, de quebra, psicológico. É um filme que, mesmo dentro de uma certa perfeição estética (sim, em termos de planos, de jogos de câmera, de fotografia, o filme é impecável) fala, para várias camadas de recepção, de questões metafísicas/filosóficas complexas, como verdade, justiça, culpa, onde vale menos a trama criminal do que o delírio do protagonista resultante do medo do poder social destituído, de uma imagem degradada. 

Em certa medida, há um paralelismo de "Tese..." e o dinamarquês "A Caça" (pra mim, ambos já na lista top 10 ou mesmo 5 de melhores filmes do ano). Se um sujeito - social que seja, uma comunidade, por exemplo, como no caso de "A Caça" - não dá conta de enfrentar seus próprios medos, o próprio inferno, sobra oferecer algum outro em sacrifício. No mínimo, a sensação é a de que pode haver controle sobre as coisas.

A gente se engana tanto, e com tanta eficiência... 

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

o crime compensa...

Da esquerda para a direita, Taissa Farmiga (Sam),  Israel Broussard (Marc), Emma Watson (Nikki),  Katie Chang (Rebecca) e Claire Julien (Chloe).
Ao longo de 10 meses, entre 2009 e 2010, um grupo de adolescentes invadiu e roubou casas de celebridades de Hollywood como Orlando Bloom, Lindsay Lohan, Paris Hilton. Era algo fácil, ao alcance desses jovens de classe média alta, que, como a grande maioria dos adolescentes, têm dificuldades em prever as implicações de seus atos. Capturados e condenados civil e penalmente, a "gangue do deslumbre", assim denominada por uma matéria na Vanity Fair com o título "Os Suspeitos Usam Louboutin", está em cartaz em São Paulo no mais recente filme da diretora norte-americana Sofia Coppola, "The Bling Ring" (2013).

Coppola, ela mesma uma celebridade, pela genealogia, pelas afinidades com o mundo da moda e a cultura pop-indie, tem apreço pela temática. Depois de uma atuação duramente criticada como a filha de Don Corleone em "O Poderoso Chefão 3" (1990), último filme da trilogia dirigida por seu pai, Francis Ford Coppola, Sofia passou a colocar o cinema de lado, e abraçou a moda. Virou designer de sapatos, fez amigos por lá, como Marc Jacobs, com quem trabalhou, e, inevitavelmente, suas conexões afetivas permaneceram num mundo já familiar - os cultivados, cults e bacaninhas. 

Até voltar ao cinema pelo lado de trás das câmeras, como roteirista e diretora. "As Virgens Suicidas" (1999) é sua estreia em longas-metragens, estrelado por Kirsten Dunst, uma das suas atrizes-amigas, com quem também roda "Maria Antonieta" (2006). Coppola carrega para seus filmes toda a bagagem da cultura pop high-class na qual sempre esteve mergulhada, a moda, a preocupação com uma trilha sonora de efeito, personagens "iguais a ela", equipe técnica de amigos, e um certo vazio existencial a mover seus personagens, ora em busca de um sentido novo, ora em busca de um certo escapismo, uma alienação desejada. 

"Bling Ring" é radical nesse último sentido, o da alienação e do escapismo. Seguindo rente à reportagem da Vanity Fair sobre a gangue de Hollywood, Coppola opta por um retrato da história pela perspectiva da ficção jornalística. Há até uma certa "desglamourização" dos personagens e, consequentemente, da narrativa. Com exceção de Marc (Israel Broussard), o único homem - apesar da indefinição sexual - e o menos inconsciente do grupo, as demais garotas encontram-se atoladas até o último fio de cabelo alisado na lama da frivolidade.

Não há sequer um frio na barriga, provavelmente o medo de serem pegos pela polícia, ao entrarem sem serem convidados nas casas de famosos de onde furtavam jóias, relógios, sapatos, vestidos, jaquetas, tudo chanel, bulgari, balenciaga, rolex, lv, balmain, rick owens, herme's e afins. Ao mesmo tempo em que os donos de todos esses objetos fetichizados pela gangue - e por todos nós, em alguma medida ou grau -, são considerados ícones pelo grupo, há uma dose de inveja que justifica suas ações: eles têm tanto, e de tudo, que não irão dar por falta; já nós, não; nós precisamos ser legitimados como personalidades "A-list" seja na escola ou na balada. E, para tanto, nada de medir esforços para ostentar uma enxurrada de marcas. 

Num dado momento do filme, Marc, ao ser entrevistado pela repórter da Vanity Fair, compara a gangue a Bonne e Clyde, o casal de foras-da-lei que aterrorizou o Texas no período da Grande Depressão americana (anos 30), e que morreu numa emboscada policial depois de conquistarem as manchetes dos jornais da época. Símbolos da luta desesperada pela fama - Bonnie sonhava ser estrela da Broadway, enquanto Clyde, temido como grande homem do crime -, o personagem de Marc afirma à jornalista que a América parece nutrir um fascínio por esses tipos. Há, porém, uma diferença considerável entre o duo texano e a gangue do deslumbre: o primeiro, numa época de vacas magras, falta de perspectivas, e sonhos a serem alcançados, vivem perigosamente como forma de se libertar, a qualquer preço, de uma situação de mesmice (havia uma consciência dos dois, num dado momento, de que não haveria volta nem perdão); já a gangue das grifes não possui essa rebeldia, nem mesmo a adrenalina; há uma banalidade tão grande em seus delitos, na forma em que os encaram, que, mesmo com todo o risco iminente de serem colocados atrás das grades, uma das meninas só consegue dizer, eu preciso de uma bolsa chanel nova pra hoje. Bora então pegar uma na casa de Paris... 
Warren Beatty e Faye Dunaway, no filme de Arthur Penn, de 1967, sobre a dupla de foras da lei texanos. O filme marca uma reviravolta na indústria cinematográfica americana, na medida que insere cenas de violência e de conteúdo sexual até então negadas como recursos por Hollywood.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

mais de 1.000 brinquedos no salão...

A exposição "mais de mil brinquedos para a criança brasileira" é sucesso. Pela curadoria, pelo projeto expográfico, pelas camadas de fruição que ela permite, por unir de forma tão equilibrada e coerente a arte popular e a conceitual, contemporânea. Estas fotos aqui são uma pequena crônica minha - estreia da câmera nova - de uma das partes mais fascinantes pra mim nessa exibição - a linha de montagem de bonecas, elas sendo admiradas na vitrine e, no correr dos polias, seus desmantelo feito ex-votos, farnese de andrade... corpos dilacerados...

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

ciência, ética e estética...

Um livro que recomendo fortemente àqueles interessados em se aprofundar em fotografia, para aqueles que apreciam e sobretudo tiram, fazem e analisam fotografia, mesmo que por hobby ou paixão, é "Filosofia da Caixa Preta" de Vilém Flusser. Editado pela Annablume e curtinho - pouco mais de 100 páginas - "Filosofia..." tem um texto direto e enxuto. Muito claro nos objetivos pretendidos pelo autor. Traçar conceitos e categorias para uma filosofia da fotografia - e aí vou mais longe, penso que Flusser lança sementes para uma epistemologia da fotografia: história, sociologia, economia da fotografia, como a arte e o fazer fotográfico são influenciados e influenciam a cultura contemporânea. 

Sem notas de rodapé ou citações - algo raríssimo num ensaio teórico - Flusser afilia-se a uma certa corrente bressoniana da fotografia como roubo, caça ou captura. Vai muito mais longe, ao enfatizar a relação essencial entre fotógrafo e câmera fotográfica, como essa relação é determinada pela afinidade e conflito entre quem aperta o botão - uma subjetividade com conceitos na cabeça - e o aparato tecnológico que processa a imagem capturada em formato ampliável e reproduzível. Não se trata aqui apenas de domínio sobre a tecnologia, mas sem dúvida Flusser afirma que o fotógrafo precisa ter essa noção de quais técnicas estão a seu dispor, sob seu domínio, inclusive como prováveis recursos ainda inexplorados e passíveis de resultarem em falhas (o que não obrigatoriamente significa algo ruim ou indesejável). 

Outra consideração relevante: uma foto, apesar de ser apenas um pedaço de papel bi-dimensional, ela, muitas vezes, não cria ou faz sentido sozinha. Isso porque a riqueza de seus elementos estão relacionados a 3 dimensões: à própria realidade, a uma posição política ou comportamento, e a um dever ser da imagem, a uma busca estética. Portanto, Flusser fala sobre obra fotográfica, um conjunto inter-relacionado, tanto mais rico e significativo quanto mais conseguir enlaçar esses 3 aspectos, quantitativa e qualitativamente. 

Entre 1969 e 1988 o fotógrafo Joseph Szabo registrou adolescentes norte-americanos. Em branco e preto, em diferentes texturas, situações, suas fotos poderiam se distribuir em diversas categorias - foto-jornalismo, crônica geracional, crítica cultural, registro de comportamento, proposta estética, enfim, seu conjunto - aqui, apenas destacado em 8 fotografias - transitariam com desembaraço por vários meios como jornais, revistas, livros, ou as paredes de uma galeria de arte. Um exemplo de fotografia em termos flusserianos... 

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

gente como a gente...


Estreia na próxima sexta, dia 23/08, a comédia indie que conquistou o verão norte-americano e europeu neste ano. "Frances Ha" é dirigido por Noah Baumbach, o mesmo de "A Lula e a Baleia", e contou com a participação da atriz Greta Gerwig - também protagonista do filme -, no desenvolvimento do roteiro. 

Comédia indie e hit do verão no hemisfério norte soam a cafonices.  Mais clichê ainda é a breve descrição geral da trama do filme: uma garota classe-média, nos seus vinte e tantos anos, já graduada, tentando se encontrar profissionalmente, sem casa ou outros objetivos de vida definidos, vagando por uma Nova York de atmosfera à la Woody Allen, onde as personagens retratadas são cools, bem-sucedidas ou meros dandies a curtir a vida cosmopolita da cidade. Pois foi por tanto desdenhar desse plot que cai do cavalo quando assisti à pré-estreia do filme, na segunda passada. 

"Frances Ha" retira sua força da autenticidade da interpretação de Greta Gerwig. De um naturalismo quase clown, ingênuo, mas altamente espontâneo e, por isso, com enorme potencial de capturar a simpatia do público. Há muito tempo não me recordava tão vivamente da premissa a fundar o cinema clássico: nada além de um pacto fictício de verossimilhança entre o espectador e a narrativa. Sabemos que é tudo mentira, mas acreditamos no que vemos, entramos na história e nos identificamos ali. "Frances Ha" refrescou-me a memória, reavivou um dos fundamentos do story-telling cinematográfico. 

A questão, então, não é sobre originalidade num sentido estrito. Já vimos outras histórias de desajustados, de personagens existencialmente perdidos entre o fim de uma etapa da vida e a tomada de consciência de uma nova rota a seguir. O que diferencia o filme de Noah Baumbach é a junção muito bem-sucedida entre os diálogos, extremamente sofisticados em suas variações de tom e humor, a interpretação de Greta, a fotografia em preto e branco, proposital para criar um quê atemporal, cult e ao mesmo tempo banal, ao redor das personagens. Gente como a gente, gente que somos ou conhecemos. As expectativas desequilibradas nas relações, as falhas de comunicação, as incompreensões mútuas, as inseguranças, o orgulho. Falar demais, inventar histórias, não dar o braço a torcer. Se ainda soa clichê, pensem que a Frances de Greta Gerwig consegue passar todo esses seus desajustes comuns a todos nós de uma maneira diferenciada, própria. Com bom-humor e generosidade tão genuínos que saímos do cinema nos sentindo especiais, únicos. Como essa louca correndo por Manhattan ao som de "Modern Love" do Bowie.  Se eu fosse você, iria conferir...

sábado, 17 de agosto de 2013

ator bom mente...

A personagem mais famosa de Norma Jean chamava-se Marilyn Monroe. Uma mulher que se tornou rapidamente estrela de Hollywood sem saber se por conta de sua beleza e sensualidade ou por seu real talento como atriz. Norma Jean/Marilyn sofria com essa dualidade. Era algo que a desequilibrava internamente, embora fosse a fonte de seu carisma e charme com intérprete. 

"Sete Dias Com Marilyn" (2011), co-produção anglo-americana, narra um acontecimento real na carreira da atriz. Em 1956, ela viaja a Londres para filmar com o ator britânico Sir Laurence Olivier a película "O Príncipe Encantado". Marilyn vai acompanhada de seu recente marido, o dramaturgo Arthur Miller, e, àquela época, já era um ícone popular. Ao contrário de Olivier, um ator shaskesperiano respeitado no meio erudito. Obviamente que o encontro entre os dois acaba por gerar um enorme conflito - o ator vaidoso e cheio de si, orgulhoso de sua formação apurada, e o símbolo sexual, instintivo e frágil, indomável em seu carisma e sexualidade. Olivier desqualifica Marilyn porque ela é bonita, insegura, autêntica e - sobretudo - talentosa de uma maneira distinta da sua. Um outro cultivo, um outro tipo de vocação (curioso que, após as filmagens, Olivier retorna aos palcos revigorado, em uma peça de grande repercussão de crítica, enquanto Marilyn filma "Quanto Mais Quente Melhor", de Billy Wilder, considerado por muitos o ponto alto de sua carreira; apesar da hostilidade e estranhamento, ambos conseguem tirar proveito das 4 semanas de convívio turbulento).

O filme de Simon Curtis, porém, centra-se no depoimento do então jovem Colin, terceiro assistente de direção dos estúdios Pinewood que, no final de sua vida, conta em livro a experiência de convívio próximo com Norma Jean e Marilyn quando das filmagens de "O Príncipe Encantado". Porque Colin conhece as duas - a estrela e a mulher que a interpreta. Aquela que nunca soube quem era seu pai, que não pôde ser criada pela mãe, que sofria intensamente com a projeção causada por sua beleza, com a imagem de fêmea fatal e, ao mesmo tempo, de loira burra pela qual era rotulada. Adoração e rejeição sentidos intensamente, sem que ela soubesse diferenciar os lugares desses afetos (pois como diz a lei da física, dois corpos - dois sentimentos/afetos - não podem ocupar o mesmo lugar no espaço).

"Sete Dias com Marilyn" chega a ser repetitivo no que se refere à lente aumentada que coloca sobre a atriz-fetiche - talvez a de aura mais poderosa entre as estrelas de cinema. Só que esse aparente defeito oferece o espaço e o tempo necessários para que Michelle Williams nos dê uma Marilyn multi-facetada, porém sempre numa chave mais grave, abaixo do que poderíamos imaginar. Sabemos que é uma interpretação de Marilyn, embora não vejamos Michelle naquele corpo, naquele personagem. Aí, nesse equilíbrio tênue e delicado, entre a fantasia e a realidade, é que, como espectadores, podemos conhecer as cores possíveis de Norma Jean/Marilyn. Não as reais ou verdadeiras, as verossímeis e críveis, essas sim. Sem necessidade de caricatura, excessos, sem bancar a pomba-gira possuída pelo mito.

(Não à toa apresento aqui minha descrença na técnica de preparação de atores ou não-atores exaustivamente empregada no cinema brasileiro, por meio da qual tenta-se apagar a identidade do ator/atriz e suas experiências para que ele vista a pele de uma personagem real e, assim, torne-a mais verdadeira. O que vemos, como resultado, são "platitudes", banalidades. Atuar é uma mentira sem tamanho, assim tenho cá pra mim).

("Namorados para Sempre" e "Entre o Amor e a Paixão" já tinham confirmado, pra mim, o talento da atriz Michelle Williams; "Sete Dias com Marilyn" deixaram-me, agora, encantado com sua figura).

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

o inverno não chega ao sesc...


Para quem assistiu ou acompanha "Game of Thrones", sabe que o primeiro episódio da primeira temporada, a desvelar todo o arco dramático do épico televisivo, entitula-se "Winter is Coming". Trata-se de uma metáfora sobre a aproximação do inverno no sentido "vacas magras", que os reinos e domínios aquém da grande muralha passarão por dias difíceis. E durante um longo período.

Assimilei a expressão como sinônimo de perrengue, de escassez de recursos, de dinheiro contado, de rio secando. No caso de algo ou alguém protegido do inverno, é sinal de que os rios continuam a jorrar leite, e o mel a escorrer das árvores. Caso da programação do Sesc. A junção de orçamento e bom gosto, resultando numa programação cultural diversificada e também ousada. E tudo sempre lota, e os ingressos se esgotam rapidamente. No mês passado, quando pensei em ver o ex-guitarrista do Sonic Youth, Lee Ranaldo, claro, tudo vendido. Neste mês, por precaução, quando foi anunciada o line-up da terceira edição do projeto "Jazz na Fábrica", uma amiga minha já estava na fila para comprar os ingressos para o show da Cassandra Wilson. Demorou, mas conseguiu.

Durante o mês de agosto, o teatro do Sesc Pompéia recebe bandas, instrumentistas, cantores e cantoras de projeção no cenário do jazz, nacional e internacional. De nomes poucos conhecidos no Brasil, como o trompetista Ibrahim Maloouf - super incensado na Europa e nos EUA - à cantoras de apelo mais pop, como Macy Gray e Cassandra Wilson, o "Jazz na Fábrica" supre com louvor a lacuna desse gênero musical em São Paulo. Tivemos "Free Jazz" e afins. Mas nada que se compare à diversidade de estilos e de origens, de contaminações mútuas, como os próprios curadores do projeto gostam de falar, revelados na extensa lista de artistas dessa terceira edição. De fato, não fosse pelo Sesc, estaríamos sim a vários pés soterrados por neve e gelo. Não só no que diz respeito ao jazz... 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

à beira do abismo...

Ocupação de Romain Crelier no monastério suíço de Bellelay - 2 grandes "piscinas" de resíduos de óleo industrial como superfície de reflexão das obras e da arquitetura do interior da igreja.
Hoje tive a nítida impressão de que tudo estava em minha cabeça. Que não precisava consultar mais livro algum, referência na internet, que já me bastava o que acumulara em minha cabeça. Foi uma espécie de recusa mesmo - por que voltar a pesquisar sobre algo que já pesquisara? Por insegurança? Postergação? Ou mera preguiça? Preguiça de fazer uso do tanto de coisas guardadas em minha cabeça. 

A sensação de totalidade, de universo, me remete à impressão de grandes imagens refletidas, de um infinito construído na sobreposição, em camadas. O vazio enxergando a forma. E foi então que essas imagens da ocupação feita pelo artista francês Romain Crelier, na igreja-monastério de Bellelay na Suíça, surgiram no meu tumblr. Nessa pesquisa tão despretensiosa de álbum de figurinha, de agenda de menina, de bloquinho de anotação que, pra mim, é a ferramenta mais interessante e gostosa das redes sociais - esse tal de tumblr.

Dois grandes containers em formas amebóides, onduladas, concentram uma grande quantidade de resíduos de óleo industrial usado. Por isso essa camada meio vinílica de espelho d'água pantanoso, brilhante e encerado. Uma substância essencialmente tóxica, artificial, no que isso tem de mais potente e pejorativo, de dejeto. Refletindo a arquitetura interior e os afrescos barrocos de um mosteiro do suíço. Artifício também, coisa de ser humano.

"Colocado no abismo" ou "à beira do abismo" podem ser as traduções do título da instalação de Crelier. Assumo, a partir da visualização das fotos da obre de Crelier, ser auto-explicativo o que seja uma instalação site-specific. É uma boa definição, entre tantas outras, essa aí, da obra de Crelier. Uma visualização que dá a vertigem da totalidade, do abstrato e do figurativo, dentro e fora, claro e escuro, reflexão e absorção. Tudo dentro de nossas cabeças. A obra de Crelier pensada especialmente para esse mosteiro barroco.

(em cartaz até 16 de setembro, em Bellelay, parte francesa do cantão de Berna, Suíça).  

sábado, 27 de julho de 2013

howard hawks, seu renascentista...

Cary Grant e Katherine Hepburn em "Levada da Breca" (1938)
Cary Grant e Jean Arthur em "Paraíso Infernal" (1939)
O Renascimento Italiano surge e cresce como movimento artístico sobretudo pelas novas regras na pintura e escultura que estabelece. Luz, perspectiva, simetria, cálculo geométrico, contraste, realismo, atmosfera, aliados ao retorno de temas da mitologia greco-romana, somados a distintas abordagens da iconografia bíblica. E assim fizeram-se, entre os séculos XV e XVI, obras-primas  em Florença, Roma, Veneza, Milão, Urbino, Ferrara, Cremona, Mantua; grandes obras e obras significativas em larga escala, aos montes, executadas por inúmeros artistas. Porém, mesmo dentro da lógica quase que industrial de encomenda de produção - propulsionada pelo dinheiro farto injetado pelas famílias nobres de cada região da Itália, os grandes mecenas da época -, alguns artistas destacaram-se mais do que outros. Mesmo dentro de uma lógica padronizada, uma lógica de regras estabelecidas e até certo porto rígidas de representação pictórica, houve autores dentro da movida renscentista - Rafael, Leonardo, Ticiano, Michelangelo, Botticeli, Mantegna são alguns deles. Pintores e escultores que grafaram seus trabalhos com assinatura própria, o que significa dizer, uma forma de composição particular, sem, no entanto, fugir às instruções da cartilha, dos cânones então determinados. 
Cary Grant e Rosalind Russell em "Jejum de Amor" (1940)
Humphrey Bogart e Lauren Bacall em "Uma Aventura na Martinica" (1944)
Com roteiro de William Faulkner, Hawks filmou mais uma vez o casal Bogart e Bacall em  "À Beira do Abismo" (1946).
Guardadas as devidas proporções, uma analogia entre a produção artística do Renascimento Italiano e a produção industrial do período clássico do cinema hollywoodiano pode ser feita. Hollywood, em seus primórdios, nascia como a fusão do que é o próprio cinema - arte e entretenimento. O público em primeiro lugar, a lógica da renda da bilheteria, assim como, no Renascimento, a lógica da arte ser igual a poder. O produtor era o equivalente ao nobre mecenas - ele contratava os talentos, diretores, roteiristas, atores, cenógrafos, e decidia o corte final, o que iria para a tela grande das salas de cinema a fim da fazer número em termos de público e de receita. Fundava-se uma lógica narrativa clássica do cinema a ser seguida a depender do gênero - comédia, aventura, suspense, western. O objetivo a ser alcançado era contar uma história, feito uma sinfonia, com início, abertura do arco dramático, tensão, apogeu e desfecho. Os diretores que seguissem essas regras. Como no Renascimento, muitos deles não deixaram seu nome distinto e diferenciado da maioria. Foram diretores de produtores, e ponto. Outros, todavia, lograram satisfazer produtores - leia-se o grande público - e, de bônus ainda, deixaram uma marca própria no modo em como e quais histórias contaram.
"Os Homens Preferem as Loiras" (1953): Marilyn Monroe e Jane Russell.
John Wayne em "Onde Começa o Inferno" (1959)
Howard Hawks foi um entre outros destaques das estampas homogêneas e indistintas do papel de parede representado pela indústria cinematográfica de Hollywood. Além de percorrer quase todos os gêneros numa filmografia extensa, de quase 50 longas-metragens, Hawks não rezou fora da bula do cinema clássico de sua época. Como um mestre renascentista, combinou essas regras à sua maneira, por meio da repetição, do exercício para adquirir o domínio, o aprimoramento da linguagem e da técnica, e assim ganhar autonomia e autoralidade como diretor. Por isso, o cinema de Hawks não é transcendental, metafísico; é um cinema da imanência, da ação, de enredos nos quais os personagens, feito cada um de nós, é obrigado a fazer o mundo girar, a viver de acordo com as contingências e também os próprios desejos. Um cinema de composição e encenação em que nada, nenhum dispositivo técnico ou forma de linguagem, está ali por acaso. Não sobra nem falta pano, não há hipérboles ou metonímias - apenas o essencial. 
Hatari! (1962)
Hawks instruindo Angie Dickinson nas filmagens de "Rio Bravo - Onde Começa o Inferno" (1959),  no catálogo da mostra Howard Hawks integral, até 31 de julho no CCSP.
Em tempo: pergunto-me se às vezes não é mais complicado criar uma autoria, um estilo próprio, dentro do que já está estabelecido, dentro das convenções já estratificadas, do que inventar uma nova linguagem a partir de uma pura negação. Para qualquer quebra ou ruptura com um modelo de fazer tradicional, penso ser essencial, antes de mais nada, conhecê-lo do avesso, de trás pra frente. Só então a ruptura pode ter significado. Porque aí, de maneira dialética, ela é continuidade, síntese. 

Em tempo 2: Os mestres do Renascimento Italiano estão no CCBB-SP até 23 de setembro (ainda comentarei sobre a expo), e a mostra "Howard Hawks Integral", no CCSP até 31 de julho.