quinta-feira, 5 de setembro de 2013

como o inferno são os outros...

Eis o plot de "Tese sobre um homicídio" (2013), filme argentino ainda em cartaz em São Paulo, dirigido por Hermán Goldfrid: 

O professor de direito penal Roberto Bermudez está no ápice da carreira. Seu seminário/curso na Faculdade de Direito de Buenos Aires é disputadíssimo pelos alunos, os quais nutrem por ele profunda admiração. Um certo temor até. O que reforça em Bermudez o sentimento de arrogância, um pairar superior aos demais, sejam alunos, amigos ou colegas de profissão. Até que surge Gonzalo, jovem advogado de 28 anos, filho de amigos de longa data do causídico. Também inscrito no curso de direito penal de Bermudez, Gonzalo deseja impressionar o mestre, revelar sua admiração por ele por meio do conhecimento, o que vai funcionar como brasa sobre combustível - Bermudez sente-se imediatamente ameaçado por aquele jovem, em todos os sentidos, literalmente. 

O catalisador dessa rivalidade é o assassinato de uma jovem, cujo corpo aparece estendido no estacionamento da faculdade interrompendo uma aula do mestre Bermudez. Na noite anterior, no lançamento de seu livro "A Estrutra da Justiça", o autor Bermudez e seu pupilo Gonzalo haviam discorrido sobre posições divergentes em relação à aplicação da lei, justiça e impunidade. Na noite seguinte, por conta do cadáver caído bem abaixo dos olhos de todos, o que parecia um embate pueril entre admirador e admirado transforma-se em ameaça, em conflito aberto entre dois rivais, o mais novo tentando tirar o poder do mais velho. Sentindo-se acuado, com o ego prestes a se esboroar, Bermudez revida ao encasquetar que o responsável pelo homicídio é ninguém menos do que seu pupilo e admirador Gonzalo. E para provar sua suspeita, transformada em sua cabeça em certeza, ele será capaz de entender e interpretar a realidade dos fatos da forma que lhe for mais conveniente. 

Ricardo Darín concede uma potência emocionante ao professor Roberto Bermudez. Ele sua a camisa ao longo dos 106 minutos de duração do filme. Pois o que vemos na tela é a transformação de um homem cheio de si, soberbo e inatacável, que vê sua blindagem egoica derreter. Por trás dela, surge um indivíduo solitário, com os instrumentos de afeto atrofiados, vista a energia psíquica drenada para manter um pedestal que vai se mostrando feito de barro. A alteridade inexiste para a personagem; quando aquela se mostra, é recebida como ameaça, e por isso a reação de ataque. É preciso atacar sem trégua porque qualquer reconhecimento do Outro, da diferença, é uma percepção do próprio desaparecimento, do fim da linha. 

Embora possa ser considerado um longa mainstream, se comparado a filmes realizados por Lucia Puenzo, Lucrecia Martel e Pablo Trapero, "Tese sobre um Homicídio" não é apenas um thriller policial e, de quebra, psicológico. É um filme que, mesmo dentro de uma certa perfeição estética (sim, em termos de planos, de jogos de câmera, de fotografia, o filme é impecável) fala, para várias camadas de recepção, de questões metafísicas/filosóficas complexas, como verdade, justiça, culpa, onde vale menos a trama criminal do que o delírio do protagonista resultante do medo do poder social destituído, de uma imagem degradada. 

Em certa medida, há um paralelismo de "Tese..." e o dinamarquês "A Caça" (pra mim, ambos já na lista top 10 ou mesmo 5 de melhores filmes do ano). Se um sujeito - social que seja, uma comunidade, por exemplo, como no caso de "A Caça" - não dá conta de enfrentar seus próprios medos, o próprio inferno, sobra oferecer algum outro em sacrifício. No mínimo, a sensação é a de que pode haver controle sobre as coisas.

A gente se engana tanto, e com tanta eficiência...