segunda-feira, 29 de abril de 2013

a exposição iminente...


Autorretratos do fotógrafo norte-americano Lee Friedlander.
Entrei no museu ainda vazio. Pouca gente circulava por lá. Mesmo assim, a sensação era de abafamento. Caiam imagens sobre minha cabeça, e eu não conseguia fixá-las. Uma ou outra fotografia me atraiam a atenção, mas o conjunto se anulou em mim. Em minha percepção, intransferível. 


Saí do museu. Bebi 2 cervejas com um amigo. Falamos da exposição. Do que estava ao redor, não das fotos. Sensação estranha, porém nada desconfortável. Logo passamos pra outros assuntos, para simplificar a noite.

Já bem distante do museu, em casa, me olhei no espelho, lavei o rosto, e me percebi menos importante. Aquele reflexo, pelo menos. Sorri, pra ver quantas marcas ao redor dos olhos se formavam. Menos rugas no olho direito do que no esquerdo. Fiz mais caretas, massagens faciais, estiquei e soltei a pele da cara várias vezes. Difícil envelhecer, fácil exagerar. Fechei os olhos com força, abri-os de supetão. Nada de mais. Não cabe a mim me ver. Isso é função dos outros. Cabe a mim estar presente. 

quarta-feira, 24 de abril de 2013

contemporâneo, que é do mesmo tempo de, que é concomitante, que é do nosso tempo...


Depois de apresentar os novos desdobramentos do seu trabalho, Juliana* levantou uma questão para nós da turma de 3a. do grupo de acompanhamento de artista: como eu faço para que meus alunos se interessem por arte contemporânea? Ela tem um ateliê onde ensina desenho, pintura, mas pensa em ir mais a fundo, em mostrar a seus alunos a relevância e a potência da arte feita nos tempos de hoje para quem, numa caracterização clichê, tem como parâmetro de arte a pintura acadêmica figurativa. 

Uma outra colega nossa, Paula, mencionou que sua professora de história da arte, na faculdade, começava o curso de trás para frente, abordando primeiro a arte contemporânea em seus vários aspectos, para depois adentrar a linha do tempo histórico. A justificativa para sua metodologia: o que é produzido no tempo presente nos é muito mais próximo; levanta proposições e suscita reflexões sobre nossas experiências atuais, sobre nossa percepção do ambiente que nos cerca. Apesar de acharmos aparentemente ininteligível, difícil, conceitual demais, mercadológico demais, gráfico demais, rápido demais. Apesar de todos esses senões, o leque variado de meios, suportes e conteúdos da arte contemporânea nos trazem questões basilares, imutáveis, que têm a ver com o fazer artístico, com as fronteiras da arte e suas novas linguagens, e com a constante renovação do pacto poético entre artista e público. 

Vejo uma analogia com o cinema brasileiro dos dias de hoje. As produções atuais, umas mais blockbusters, outras, mais autorais, refletem mudanças em relação ao passado. Ou melhor, refletem uma conexão com o que vivemos atualmente, seja a onda de comédias com elenco global e temas ligados a novos padrões de comportamento vividos pela sociedade brasileira, seja a safra recente de realizadores em busca de uma reflexão crítica - de linguagem inclusive - sobre as peculiaridades e mazelas do Brasil do presente. É claro que não há descarte do passado, do legado da história do cinema nacional. O ponto é que muita coisa ficou anacrônica, como as chanchadas, ou mesmo certa obrigatoriedade de filiação com o Cinema Novo ou o Cinema Marginal. Vínculos e inspirações continuarão a existir, porém eles se renovam na medida em que o compromisso é a comunicação com o público que vive o seu hoje. É uma vontade culturalmente natural - e saudável - de retratarmos e sermos retratados nesse presente, assim como os mercadores burgueses do renascimento holandês também o queriam naquele tempo. Ou a arte sacra em seu apogeu, como meio de fortalecer os laços entre igreja e seus seguidores.

Adiantando o futuro, mesmo que breve, estreia dia primeiro de maio, próxima quarta-feira, o documentário "Doméstica", de Gabriel Mascaro. Sete adolescentes tiveram como missão registrar por uma semana a sua empregada doméstica e entregar o material bruto para o diretor realizar, por meio da montagem desses registros, um filme. Entre o choque da intimidade, as relações de poder e os afazeres do cotidiano, o que está em jogo é um olhar contemporâneo sobre o trabalho doméstico no ambiente familiar, num contexto  mais atual impossível das recentes mudanças do marco regulatório brasileiro referente a esse tipo específico de relação trabalhista. 

"Doméstica" vem a público embebido em polêmica, em meio ao debate ideológico que permeia essa questão no Brasil. Muitos dirão que se trata de oportunismo e de violência à integridade dos personagens retratados; outros,  que se trata de um contundente ensaio sobre afeto e relações de poder, uma mistura indistinta em nosso país. Hoje e desde há muito tempo. O olhar é que se atualiza. 
*os nomes são fictícios

segunda-feira, 22 de abril de 2013

viviane sassen, dentro e fora da moda...


Recentemente publicado em fevereiro, o livro "Viviane Sassen: In and Out of Fashion" faz uma compilação da carreira da fotógrafa holandesa. Viviane passou parte da adolescência na África, o que influenciou profundamente seu trabalho, não apenas por conta das cores, mas também pelos elementos esculturais e gráficos nele presentes. Some-se a isso um olhar muito subjetivo - explico melhor, muito feminino - de seus retratados. O que, na minha percepção, se reflete em composições surreais e densas, de grande intimidade, revelação e ocultamento dos corpos em foco. 

Seja no mundo da moda, no qual a fotógrafa se firmou como uma das mais requisitadas, seja em seu mundo de interesse particular, meramente artístico, a obra de Sassen desvela uma perspectiva contemporânea altamente refinada, estudada em cada detalhe, sem distinção de apuro visual e poética para editoriais e campanhas publicitárias de trabalhos seus executados fora desse universo. Dentro ou fora da moda, a obra de Viviane Sassen é única, indistinta e autoral.

domingo, 21 de abril de 2013

cy twombly e a recepção da obra de arte...

Obras pinçadas de vários períodos da trajetória artística de Cy Twombly, que demonstram seu mix de desenho e pintura; suas técnicas primitivas e gestuais; o uso da caligrafia e da palavra; as repetições; o caráter rupestre e de composição oriental baseada nos vazios e num preenchimento meticulosamente desordenado do campo visual.
O nome, em si, já se refere a um garrancho, a um desarranjo visual: Cy Twombly (Cy era o apelido de Edwin Parker). Artista prolífico e de extensa carreira (nasceu nos EUA em 1928 e morreu recentemente, em 2011), teve sua obra inscrita dentro da "turma" que se contrapôs ao expressionismo abstrato norte-americano, liderada por Robert Rauschenberg e Jasper Johns. 

Porém, como a peculiaridade de sua alcunha, a obra de Cy Twombly sofreu muitos entraves e preconceitos para ser digerida. Houve sempre muitas controvérsias ao seu redor, detratores junto a defensores entusiastas. Uns, proclamando que sua obra, entre o desenho e a pintura, mais parecem riscos, borrões e rabiscos possíveis de serem reproduzidos por qualquer criança; outros, na posição contrária, como o filósofo e teórico francês Roland Barthes, enxergam um jogo muito vigoroso de transgressões plásticas e de linguagem na obra de Twombly. 

Acabo de ler um texto de Barthes sobre Twombly. De fato, como nos define a filosofia contemporânea, somos indivíduos modernos na medida que não podemos prescindir da linguagem não apenas para nos comunicar mas também para entender o mundo ao nosso redor. Os textos de Barthes trazem esse prazer de sermos modernos, tamanha a riqueza de referências, de composições e associações, de aberturas de leituras e pontos de vista. 

Barthes aborda o primitivismo e a precariedade característicos da obra de Twombly; fala dos borrões, dos traços e pinceladas intencionalmente mau feitos; da mistura de repetições, vazios e da escrita em suas composições, o que, de acordo com o pensador francês, nos causa estranhamento porque não nos remete a códigos artísticos enraizados na cultura ocidental, aos quais estamos acostumados, mas sim a um fazer artístico oriental, marcado pelos intervalos, pelo não preenchimento da tela de maneira racionalmente ordenada. Os vazios são propositais, assim como o desleixo e as repetições têm a ver com uma preocupação gestual do artista, para dar a ver ao espectador o processo e os materiais utilizados na obra. De forma análoga, os títulos dos quadros de várias séries de Twombly remetem a figuras da mitologia grega, ao romantismo do século XIX, a escritores e poetas clássicos; todavia, a representação pictórica desses títulos é deliberadamente precária, tosca, lembra o pixo, inscrições rupestres. 

Barthes levanta a seguinte questão essencial em relação a essas características do artista norte-americano: mesmo com todas suas idiossincrasias, falhas e julgamentos negativos associados, será que a obra de Twombly, assim como a de muitos outros artistas contemporâneos, não encontram sua força - e daí seu grande legado - nesse chacoalhão que dá ao espectador? Qual a razão de pintar novamente, de forma eminentemente figurativa, o mito de Leda e o cisne, se tantos já o fizeram? Quando um apreciador de uma pintura diz, "eu gostei desse quadro", será que tal juízo de valor não nos fecha para qualquer outro sentimento ou reflexão mais complexos e perturbadores? E mesmo que alguém, diante de um quadro de Twombly, diga que poderia, ele mesmo, reproduzi-lo ou refazê-lo tecnicamente melhor, a que nos serviria essa "cópia" se ela não traria mais consigo os traços que a faziam original em sua aparente incompletitude ou incompetência artística?

Esse tipo de discurso pode ser transposto à pintura abstrata, ao construtivismo, ao action-painting: pegue e faça você mesmo, pode sair melhor, mais bem acabado. Em relação a quê? A fotografia já não nos liberou da obrigatoriedade da figuração? E o papel da arte não é também trazer para o mundo do espectador, elementos, repertório, memória e lembranças que o transformem também num artista em potencial? 

Sem o esforço da reflexão, sem a tomada de tempo obrigatória requerida para qualquer forma de apreciação artística, sem Roland Barthes e suas teorias, sem o caráter essencialmente evocativo e primário da obra de Cy Twombly, sem tantas outras coisas passíveis de serem consideradas supérfluas e "castelos nas nuvens", seguramente o mundo ficaria ainda mais pretensioso e vazio. 
Fotos feitas em 1994 por Bruce Weber da casa de Cy Twombly na Itália. 

sábado, 20 de abril de 2013

o artista é um editor de imagens...

Obras de técnicas e séries diversas da prolífica trajetória artística do paraense Emmanuel Nassar.
Jerry Salz é historiador da arte, e tem uma coluna no Village Voice, de Nova York. Roberta Smith é jornalista especializada em artes visuais e escreve no New York Times. Também tem sua própria coluna. Ambos são considerados críticos de altíssima reputação no mundo da arte contemporânea. Ambos,  coincidentemente, formam um casal. 

Eles declaram evitar falar de trabalho em casa. Da mesma forma, procuram não ver as mesmas exposições ou visitar as mesmas galerias ao mesmo tempo. Além disso, cada um possui seu modo de olhar a arte e, portanto, seu próprio estilo de escrita. Roberta é mais formalista, a ela interessa a técnica, o processo, o meio de expressão do artista; Jerry, por sua vez, gosta da vertente de narrativa contida em toda obra de arte, atendo-se mais ao que a obra tem a contar do que em seu suporte. 

São duas formas distintas, no entanto, complementares, de abordar a arte. Forma e conteúdo não se dissociam, porém há casos em que aspectos formais destacam-se mais do que o conteúdo e vice-versa. Tudo depende da maneira como o artista alia suas intenções, seus conceitos, dentro da linguagem escolhida por ele para se comunicar.

No contexto da arte contemporânea, artistas sofrem com a  questão da originalidade, com o processo de encontrar um estilo próprio, único. Uma vez imersos num mundo em que todos os limites e extensões da arte já foram explorados, cabe ao artista um papel de editar, à sua maneira, o volume de imagens e influências a seu redor. Como na montagem de um filme. 

Tomo o exemplo da obra do paraense Emmanuel Nassar como representativa dessa concepção de fazer artístico contemporâneo. Influenciado pela riqueza da miscigenação portuguesa e índia de Belém, Nassar é um editor das cores intensas e quentes encontradas pela cidade, da iconografia popular, incluindo a da indústria cultural, das formas e modos de vida locais. O resultado dessa edição é original na medida em que se materializa numa linguagem aparentemente oposta, em formatos que flertam com o construtivismo, a abstração, e geometrismo característicos da arte moderna brasileira.  

Trabalhando inicialmente a acrílica sobre tela, depois o relevo sobre madeira, e depois técnicas de assemblage, a obra de Nassar sempre bebeu na fonte do popular mais popular possível, em releituras de desenhos e pinturas encontradas em bares e banheiros públicos de Belém, das cores vibrantes dos muros e das casas, dos anúncios em placas de metal tão recorrentes na periferia da cidade. 

Jerry Salz e Roberta Smith, muito provavelmente, escreveriam resenhas muito distintas sobre a obra de Emmanuel Nassar. E, também muito provavelmente, seriam críticas complementares: enquanto Smith ressaltaria a riqueza das composições formais, o contraste das cores e formas que tornam Nassar único no universo construtuvista brasileiro, Salz enfocaria o contexto em que essa obra foi editada, seu diálogo particular e ao mesmo tempo universal entre a cultura popular paraense, a indústria cultural e a sociedade de consumo na qual estamos todos inseridos.