quinta-feira, 23 de maio de 2013

eu não estou lá...

Os 6 atores que representam a vida e a personagem pública de Bob Dylan, no cartaz original do filme, de 2007. Cate Blanchett foi indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por sua atuação. Ao lado dela, no canto inferior esquerdo Heath Ledger.
"Eu não estou lá" é o título do longa-metragem de Todd Haynes, baseado na vida e obra do cantor e compositor norte-americano Bob Dylan. 6 diferentes atores representam 6 aspectos da história e das canções de Dylan. Ele, mesmo, nunca está lá. 

Títulos são desprezados muitas vezes. Assim como os créditos, a apresentação de um filme, a capa de um álbum ou a moldura de uma tela. Mas vamos nos concentrar apenas no título. Quando um artista denomina uma obra "sem título", da duas, uma. Ou se trata de uma peça pertencente a um série, a um conjunto, em que o todo é o que dá coerência, o conceito que substitui o título; ou é mesmo um pouco caso com a própria obra. Digo isso porque penso que títulos, nomes, são importantes (óbvio que me incomoda profundamente ver uma pintura abstrata, sem conceito ou composição, denominada "O Mito de Sísifo Encontra O Minotauro no Labirinto"; isso me remete àqueles concursos de fantasia nos carnavais de antigamente, em que todas as fantasias na categoria luxo tinham um título apoteótico e, no fim, um era igual ao outro, assim como as fantasias: uma profusão de penas e paetês). 

"I'm not there". "Eu não estou lá", este título diz muito sobre o filme. Sobre como Bob Dylan já virou um personagem, um mito; uma figura que não carece mais de uma identificação unívoca para que seja evocado - todo seu repertório de canções, de vivências, de estilo, tudo isso prescinde de sua presença. Ele não está lá porque não precisa mais estar. Não faz mais sentido.
Os trabalhos da fotógrafa canadense radicada em Chicago Laura Letinsky retratam um conceito análogo de ausência, de falta. Aqui, pego os exemplos de duas de suas séries: "Manhã e Melancolia" (c. 1997-2001) e "Eu Não Me Lembrei Que Havia Esquecido" (c. 2002-2004). 

Os títulos são chave para uma compreensão mais acurada e poética das fotografias de Letinsky. Temos cenários como "naturezas mortas" sob uma luz intensa da manhã; mesas com restos de comida, com toalhas manchadas, utensílios domésticos. Evocações da presença de muitas pessoas reunidas, de uma festa, uma refeição compartilhada. Só que estamos no dia seguinte. Não há mais convidados, amigos, familiares, apenas seus vestígios, o lixo e a bagunça que o anfitrião preguiçoso - ou talvez triste pelo fim da festa - ainda não limpou. 

"Morning and Melancholia", segundo Letinsky, é um jogo de palavras, uma alusão a "Mournig and Melancholia" ("Luto e Melancolia"), um texto clássico de Freud sobre as respostas humanas à perda. Já "Eu Não Me Lembrei Que Havia Esquecido" refere-se a uma citação de Santo Agostinho, em suas memórias, em que o santo finaliza, dizendo, que "ninguém poderia jamais dizer que eu não me lembrei que havia esquecido". Como se fosse a marcação de uma ausência dupla: não se lembrar e esquecer. Letinsky relata que ficou cerca de 3 anos sem ouvir música enquanto dirigia, até quando sintonizou o rádio do carro numa FM, e então recordou dos CD's largados ali no porta-luvas. A sensação, segunda ela, foi a de ter bebido água quando se está com muita sede: como, afinal de contas, ela não se lembrava que havia esquecido que gostava tanto de música?

Penso que conseguimos lidar com a ausência, a falta, quando a elaboramos por meio de índices, registros e marcas daquilo que aquela presença nos deixou. Como herança, como exemplo, como sentimento vivido. Bob Dylan é um ícone tão representativo na cultura pop ocidental que já virou metonímia; não precisamos mais dele, de sua presença; apenas assobiamos "Blowin' In The Wind". Já os restos e vestígios de pessoas reunidas, se divertindo, nas fotos de Laura Letinsky, nos faz pensar nesse interstício, nesse tempo no meio, no vazio, em que estamos ainda de luto, sem mexer uma palha para limpar e organizar os rastros daqueles que não estão mais presentes. Aqueles que não estão mais ali. E cuja ausência nos faz lembrar como comumente nos esquecemos de quanto a presença deles costuma ser boa, prazerosa. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário