domingo, 26 de maio de 2013

assim é se lhe parece...

Capa da primeira reimpressão de "Mongólia", ganhador do Prêmio Jabuti de melhor romance em 2004.

Foto de família nômade mongol tirada por Bernardo Carvalho no período em que o escritor viajou pelo país.
Uma das qualidades dos romances escritos pelo jornalista e escritor carioca Bernardo Carvalho é a pesquisa a qual ele se dedica para construir suas narrativas. Não falo aqui de pesquisa apenas no senso mais estrito, falo também da pesquisa de campo, da experiência vivida como sujeito, que depois se transforma em autor. 

Assim como na história de outros de seus livros, "Mongólia" (2003) é um romance que resulta de uma estadia de 2 meses do escritor naquele país, financiado por uma bolsa de criação literária da Fundação do Oriente, de Lisboa. Com a ajuda de dois guias-intérpretes e dois motoristas, que se revezaram ao longo dos cinco mil quilômetros percorridos, Carvalho não tinha exatamente o compromisso de escrever uma narrativa ficcional, o formato final de "Mongólia". Poderia ter sido um ensaio, ou vários deles, ou um relato de viagem, ou um conjunto de poemas talvez inspirados pelo contato com o budismo, com a cultura nômade, com uma Mongólia que nos é vendida usualmente como uma paragem intocada, ainda preservada, idílica. 

E aqui está o núcleo rígido da obra: o resultado de uma enorme decepção, de um choque cultural imenso, a quase impossibilidade de um ocidental, feito qualquer um de nós, de penetrar e entender o que é a cultura oriental de um país como a Mongólia. Um país que viveu por 70 anos uma das ditaduras comunistas mais violentas do mundo e que, após a sua queda, retomou o budismo com força total e poder absoluto, como símbolo de uma liberdade a qual aquele conjunto de povos e etnias talvez jamais tenha conhecido. 

Porque não há a figura do indivíduo na Mongólia de Bernardo Carvalho. Apenas natureza - montanhas, desertos, vales, lagos -, e uma natureza cruel, pelada, quase sem árvores, uma paisagem que, segundo um dos personagens, é o reflexo exato do céu, onde nada se deixa registrar. 

Do desencantamento com o Oriente e sua cultura, dessa impossibilidade de diálogo, nascem os conflitos dos personagens de "Mongólia". São 3 relatos sobrepostos - um diplomata aposentado, no Rio de Janeiro, escreve, a partir de diários e anotações, sobre a busca de um subordinado seu, apenas chamado de o "Ocidental", quando ambos serviam ao Itamaraty em Pequim, por um jovem fotógrafo brasileiro que havia se perdido, àquela época, no interior da Mongólia. Essa viagem de busca pelo desaparecido dá-se em 3 camadas - há as anotações do fotógrafo, entregues ao Ocidental pelos guias que ajudaram-no em suas incursões pelo país; há os diários do Ocidental sobre a sua viagem atrás do fotógrafo sumido; e há a costura da história dessas buscas, feita pelo diplomata aposentado, cujo desejo de ser escritor cumpre-se naquele momento, numa espécie de ajuste de contas moral com seu ex-subordinado, recém-assassiado numa favela do Rio. 

A narrativa é intrincada, cheio de desvios e desvãos. Mas não há trapaça. Em nenhum momento os personagens de "Mongólia" se colocam como donos da verdade (e, consequentemente, nem o próprio autor). A raiva, a indignação, os sentimentos que os movem advêm dessa incomunicabilidade, da tentativa de não se resignar a uma realidade que se impõem a eles como impenetrável, fanstasmagórica. Eles só desejam se reconciliar consigo mesmos, acreditar num projeto autoral, de indivíduo, libertário, projeto esse que nenhum manual de auto-ajuda (ou, no caso, de um retorno ao "mito do bom selvagem") vai nos indicar a como colocá-lo em prática. Nesse caso, só a experiência de cada um. 

Muito provavelmente, se você for à Mongólia, vai enxergar coisas que a "Mongólia" de Bernardo Carvalho não captou. Afinal, você é o autor daquilo que vê. 

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