sexta-feira, 24 de maio de 2013

pobre diabo...

"Reality" (2012), de Matteo Garrone, valeu ao diretor italiano, pela segunda vez, o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cinema de Cannes.  O primeiro Grande Prêmio foi concedido a "Gomorra" (2008).

No meu hábito recorrente de associações ininterruptas, ao terminar de assistir a "Reality" (2012), mais recente trabalho do diretor italiano Matteo Garrone, o mesmo de "Gomorra" (2008), logo me vem à cabeça um personagem de Dostoiévski, daqueles tragicômicos, que entram numa jornada íntima de loucura apática, de alienação e recusa às desilusões. Assim enxerguei a trajetória do ingênuo e simples Luciano, um peixeiro que vive com sua grande família em Nápoles, daquelas caricatas mesmo, com direito a avós, tios, tias, sobrinhas, filhos, vizinhos, todos sempre juntos, falando alto, discutindo, metendo-se um na vida do outro.

Junto com a mulher, Luciano também tira um troco a mais para o sustento da família por meio de pequenos golpes com mercadoria contrabandeada. Tudo bem, afinal estamos em Nápoles. E tudo bem até aqui, pois, nesse caos aparente, Luciano encontra a segurança necessária para levar a vida. 

Até que, numa festa de casamento, ele conhece Enzo, um ex-Big Brother (Grande Fratello, na versão italiana) que sobrevive de ser celebridade de quinta categoria a esquentar eventos "meia-boca". Estamos no início do filme, numa cerimônia de casamento mais próxima de um misto de Família Adams com Rock Horror Show. Luciano está, ele próprio, trajado de drag queen, e encanta-se com atenção que a fama de instant-celebrity proporciona a Enzo. "Never give up", "nunca desista", Enzo repete ad nauseum percorrendo o grande salão de festas, seguido por um Luciano hipnotizado. Daí a ser incentivado por toda a família a se inscrever na próxima edição do "Grande Fratello" é um pulo. Assim como de súbito, depois da primeira entrevista nos estúdios da CINECITTÀ em Roma, Luciano decide vender sua banca de peixes e apostar todas as fichas na perspectiva de "entrar na casa". 

Volto com Dostoiévski: o ritmo da construção do personagem de Luciano, a guinada em sua vida que o sonho e a expectativa de participação no reality show trazem, a agilidade das sequências inciais, compatíveis com a euforia do protagonista, combinadas à posterior desconstrução tragicômica desse sonho, retratada em sequências mais estendidas, remetem-me ao estilo e aos personagens do escritor russo. Embalado pela empolgação, por uma súbita febre interpretada por Luciano como uma espécie de iluminação, um sentido verdadeiro para sua vida, o protagonista embarca num delírio sem volta.

E mais uma vez Dostoiévski, "na terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas, com o intuito de rir, aqui não vamos mentir". Garrone segue esse aforisma ao pé da letra. Antagonicamente ao violento e cru "Gomorra", o registro de "Reality" é o da comédia, da fantasia. Porém, uma comédia negra, uma fantasia decepcionada pela verdade do mundo cruel das aparências. Não se trata mais da comédia pelo riso, do sonho pelo prazer. Trata-se da comédia pelo drama, o sonho como caminho para a loucura. Pobres diabos, esses de Garrone e aqueles de Dostoiévski.
Luciano (Aniello Arena), já no auge de sua obsessão, fingindo estar no "confessionário" do "Grande Fratello" dentro do closet de sua casa.
PS. A atuação de Aniello Arena, que vive Luciano, foi comparada por muitos críticos à de um jovem Robert De Niro. De fato, sua interpretação é contundente, empática com o espectador. Curiosamente, num filme que fala sobre a confusão entre vida real e ilusões, importa lembrar que Arena é um ex-pistoleiro da máfia napolitana, que cumpre prisão perpétua por um triplo homicídio no qual tomou parte em 1991 contra uma gangue rival. Saiu da cadeia apenas para filmar "Reality" - Garrone o descobriu no grupo de teatro da prisão de Nápoles quando filmava "Gomorra". Irônica coincidência com seu Luciano. Pobre diabo.

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