domingo, 5 de maio de 2013

a solidão do livro...


Às vezes eu penso que a solidão de um livro só é quebrada em dois momentos: um, quando o folheamos e lemos a história que ele carrega; e um outro, quando o devolvemos à estante, junto aos seus. Neste último caso, ele volta a sua família de iguais, mas seu conteúdo permanece isolado, só, até que alguém aproxime-se novamente da sua estante-natal e o resgate da imobilidade de objeto decorativo.

A arte contemporânea tem recorrido muito ao objeto-livro e aos signos da linguagem escrita como suporte artístico. Talvez seja resultado do conflito que experimentamos atualmente em relação aos livros: não conseguimos prescindir deles, da literatura, da narrativa de histórias ou da poesia das palavras - como dizia Mallarmé, tudo o que existe no mundo deveria acabar em livro - porém, já não estamos assim mais tão disponíveis e dispostos à compenetração e disciplina que a leitura exige. Isso sem falar na questão da própria organização do nosso pensar; se lemos menos, usamos menos as palavras para compor um discurso; ficamos limitados, mesmo que tenhamos fluência no mundo das imagens (será que é por isso que vejo diálogos inteiros só por emoticons?, rs...).

O mais recente trabalho de ficção do escritor gaúcho Daniel Galera - "Barba Ensopada de Sangue" - tem como protagonista um personagem solitário, sem nome que o identifique, e uma compreensão do mundo que não passa nem pelos livros nem tampouco pelo mundo digital, nem mesmo pela arte. Falamos de um professor de educação física, tri-atleta, que se isola em Garopaba, no litoral catarinense, depois do suicídio do pai. Fatos acontecem na vida desse indivíduo que o fazem ficar sem lugar no mundo, sem vínculos com o irmão, que se casou com sua ex, e com a mãe, uma mulher frívola, tendo como companhia mais próxima a cadela que pertencera a seu pai, Beta, de quem extrai o afeto essencial para viver.

Ao longo da narrativa, percebemos haver outro agravante: o protagonista sofre de amnésia de fatos recentes; sobretudo, ele não retém a memória dos rostos das pessoas com quem convive. 

Nesse contexto de quase autismo, Galera insere seu personagem principal numa metáfora da saga do herói, na qual a escolha por viver numa cidade turística com pouquíssima vida própria relaciona-se à busca por rever a identidade tanto num movimento de auto-exílio como também na procura dos rastros de seu avô, de nome Gaudério, sobre quem o pai lhe conta, pouco antes do suicídio, que desaparecera para os lados de Garopaba, há muitos anos, sem nenhuma notícia do que poderia ter-lhe ocorrido.

Em momentos de solidão voluntária, me parece que pedimos um teste de resistência física e emocional que nos coloca, num primeiro momento, em contraposição à vida, num embate no qual saímos perdendo, inócuo. Como as ondas que não conseguem furar a resistência colossal de um paredão de rochedos. Trata-se de um estágio a ser superado, sob pena de flutuarmos à deriva. O herói sem nome de Galera, porém, aceitou o desafio de ir mais a fundo. Por meio de provações e lutas intestinas, atingiu o estágio da aceitação e da entrega. Trouxe para suas mãos a condução de sua vida. Sem budismos ou referências religiosas. Ele permaneceu solitário. Porém, livre para se comprometer com sua própria história. Uma autoralidade que acaba por despertar o interesse e a atenção de outros personagens. Assim como acontece na ficção da vida.

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