quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Estranho, demasiado primitivo


Louise Bourgeois, caneta sobre papel rosa, 2000
O conceito de estranhamento foi enfatizado várias vezes no post anterior. É justamente ele, essa palavra, que, a meu ver, define e justifica a existência do fazer arte desde que o mundo é mundo. Afinal, quando éramos meros seres pré-históricos, com poucos recursos tecnológicos para sobreviver, a tentativa de compreender o ambiente à nossa volta nos impulsionava a desenhar e pintar nas paredes escuras das cavernas onde morávamos. Eram cenas de caça; estratégias de captura dos animais que nos alimentavam e aqueciam; eram visões hipotéticas de como a natureza havia sido criada. Víamos e percebíamos o mundo ao nosso redor e buscávamos atenuar a sensação de estranhamento em relação a ele – as pinturas rupestres operavam uma transformação desse estranhamento em encantamento do mundo, depois em familiarização, desencantamento, apropriação, e re-encantamento. Um moto-contínuo sem fim, que com o passar dos anos e séculos foi se agregando a inúmeras descobertas técnicas e  novas formas de expressão artística, até chegarmos aos dias de hoje, quando uma profusão de representações e simulacros invadem nossas cabeças como resultado dessa mesma operação primitiva de dominar e simbolizar o que nos é estranho.

Pinturas rupestres encontradas nas Grutas de Lascaux, sudoeste da França, representando a caça do homem primitivo  
Voltando ao filme de Almodóvar, “A Pele que Habito”, a situação de estranhamento é limite. Vicente foi mutilado e desumanizado pela ação vingativa de seu algoz, a um tal ponto em que lhe restou o confinamento em um quarto-cela, monitorado 24 horas por dia, sem contato com o mundo exterior, e sem poder ver e sentir a si mesmo, vestindo um body nude a fim de proteger a pele artificial enxertada em seu corpo. Um corpo inteiramente estranho.

A única saída para esse boneco desumanizado para restituir um mínimo de sanidade mental é recorrer a algum tipo de simbolização. E Almodóvar se vale da obra visceral e complexa da artista contemporânea Louise Bourgeois para guiar Vera/Vicente em seu caminho de compreender o incompreensível, o que lhe é medonho e extremamente doloroso. 
Vera/Vicente (Elena Anaya) em seus exercícios "bourgeoisianos" em seu bondage suit

Os exercícios de yoga, os alongamentos executados por Ver com seu bondage suit remetem aos bonecos cor da pele, amorfos e desfigurados que Bourgeois concebeu e costurou. Figuras mutiladas e duplicadas. Solitárias ou empilhadas em grupo. Representação de castração e violência, do desumano.


Figura-faca, de Louise Bourgeois, de 2002



Boneca mutilada de Louise Bourgeois
Os escritos feitos pela prisioneira em todos os espaços em branco das quatro paredes que a encarceram repetem a todo momento os dizeres “sei que respiro”, bem como são preenchidos por desenhos baseados na “mulher-casa”, também de Bourgeois, um híbrido a representar o horror e a busca pela sua expiação.
Cena de "A Pele que Habito" em que Vera observa seus desenhos e escritos feitos no cativeiro ("a mulher-casa" de Bourgeois está à direita, na parede.

Desenho de Bourgeois, denominado "mulher-casa".

Almodóvar faz uso explícito da arte de Bourgeois em “A Pele”. O espectador não precisa ter conhecimento prévio da extensa obra da artista franco-americana para se dar conta de que Vera/Vicente produz sua arte por uma questão de sobrevivência e saúde psíquica, como principal meio, naquele contexto, para viabilizar sua fuga e sua volta ao mundo. Nas próprias palavras de Louise B., em sua obra de 2002, “a arte é uma garantia de sanidade”.
Vera/Vicente é um homem das cavernas, primitivo em sua condição de estranhamento em relação ao que a cerca. Porém, altamente sofisticada e hábil para organizar e mapear esse estranhamento, nomeá-lo e simbolizá-lo. E nessa operação, o homem pré-histórico, assim como Vera/Vicente, se reposicionam no mundo não como meros vencedores ou conquistadores. Mas como indivíduos mais conscientes de sua frágil condição humana. 

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