terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Do início



The art i live in. A arte que habito. Claramente, uma paráfrase do título do filme mais recente do diretor espanhol, Pedro Almodóvar, “A Pele que Habito”, de 2011. Um filme estranho na trajetória recente de Almodóvar. Não no sentido das perversões ou perturbações sempre característicos de seus personagens, normalmente envolvidos em tramas carregadas, simultaneamente, de humor e lágrimas. Talvez até seja uma volta às suas origens, não sei, mas isso pouco importa aqui. O que me interessa é exatamente o fato de “A Pele que Habito” ter causado essa estranheza de crítica e público, quando se costuma esperar do realizador espanhol elementos de leveza e redenção usualmente presentes em suas obras.
Vicente transformando-se em Vera
“A Pele que Habito” não é leve, e não há salvação para seus personagens – quase todos atingidos por mortes violentas e brutais. Vemos um cirurgião plástico, vivido por António Banderas, em sua obsessão por criar uma pele artificial que seja imortal, resistente ao envelhecimento natural. Num primeiro momento, temos a impressão que essa sua obsessão advém de uma grande dor, do suicídio de sua mulher após se ver desfigurada pelas queimaduras causadas por um acidente de carro. E não estamos totalmente enganados: a fixação do doutor Frankenstein de Almodóvar é mesmo motivada pela dor, ou melhor, pelo acúmulo de várias dores. A derradeira delas, o também suicídio de sua filha depois de ser estuprada por um jovem rapaz. Daí a serventia de sua grande invenção – utilizá-la ao limite, como vingança, para transformar Vicente (Jan Cornet), o estuprador de sua filha, em uma mulher perfeita em sua beleza e juventude. Sua nova identidade é Vera (Elena Anaya), nome símbolo de uma verdade falsa, de um belíssimo monstro que, no íntimo, ainda se sente como Vicente.

Vera (Elena Anaya), em seu cativeiro, com o body de proteção de sua pele artificial: um híbrido que procura um novo sentido para seguir vivendo (ao fundo, os escritos na parede e alguns dos seus objetos produzidos).


Agora, interessa-me esse segundo elemento de estranheza no filme de Almodóvar. Não apenas a estranheza da trama de horror, violenta e trágica, mas a estranheza e mal-estar de um homem transformado, à sua revelia, em mulher. Um novo ser que não se reconhece, que perde o poder de sentir, um alguém desumanizado. Presa de seu criador, Vicente/Vera não tem nem mesmo a liberdade de se matar, pois a artificialidade desse híbrido permite um eterno reviver. Ela(ele) é obra de um outro, não de si mesma(o). Somente quando Vicente/Vera se recria como Vera/Vicente, num novo "eu-próprio", surge então a possibilidade de sobrevivência. A re-apropriação de uma identidade, de um mundo seu, ocorre por intermédio de um diário escrito ininterruptamente nas paredes de sua cela, através de suas costuras, colagens, esculturas e desenhos, nos quais trabalha a estranheza de sua duplicidade, de sua mutilação e falta. Ao longo desse processo, nasce a força para escapar, para fugir de um destino cruel de objeto, e tentar retomar sua vida anterior, retornar ao lar e à mãe. Voltar para um abrigo minimamente confortável, mesmo sabendo, inconscientemente, que isso nunca lhe será possível novamente.

Daí a sequência final do filme, não menos estranha porque abrupta e absurda: Vera entra no brechó de roupas de sua mãe,  uma senhora desgastada e envelhecida pelo desaparecimento do filho, e se apresenta, “Olá, sou Vicente”.   

Vicente (Jan Cornet) em seu primeiro cativeiro, antes da vingança ser consumada.
Plano de "A Pele que Habito" (2011), no qual criador e criatura são colocados de maneira simétrica, baseado na tela do pintor renascentista italiano, Ticiano, "Vênus e Organista", de 1548. 






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