domingo, 24 de março de 2013

leah gordon e a etno-fotografia...


Todo ano, Jacmel, uma cidade litorânea no sul do Haiti, celebra o Carnaval. O Carnaval haitiano ainda reflete as tradições étnicas do caldeirão cultural do país. Mistura de festejos medievais, raízes africanas, mitologia voodoo, e sátira política, os monstros do bestiário carnavalesco da ilha caribenha saem às ruas durante os dias de Carnaval para festejar, celebrar, espiar os fantasmas e espíritos ruins e, ao mesmo tempo, exercer a crítica social e política. 

Na série denominada "Kanaval", toda ela em preto e branco, a fotógrafa britânica Leah Gordon documenta a festa popular em Jacmel. Com uma obra focada no foto-jornalismo, na fotografia etnográfica e antropológica, Gordon consegue transmitir, em seus registros, a potência primitiva do Carnaval haitiano, dando a ver a rica iconografia utilizada pela população durante a festa - vide os cornos, chifres, máscaras -, e seu lado sombrio, pesado até. 

Aqui, vem-me à cabeça, uma analogia com a obra do etno-fotógrafo francês, radicado baiano, Pierre Verger. Suas fotos, também em branco e preto, são ícones representativos da cultura afro-religiosa ainda bem viva nessa região do Brasil. Uma cultura onde a violência também ocupa um espaço importante.

Quando fui a Salvador pela primeira vez, tive essa sensação quase que imediatamente. Salvador não é suave. É lustrosa, ruidosa, fedida e cheirosa, colorida, poluída, barroca, negra, mestiça, portuguesa, uma cidade cuja população parece carregar nas costas um fardo, um peso que vem tanto da violência da escravidão, como da violência primitiva da religião iorubá.

A visão de universo e mundo a unir Haiti e Bahia está fincada numa força primitiva sombria, guerreira e metálica, sensual e sexual. Força essa que traz consigo um peso. Peso que se soma à violência da escravidão, violência essa que até hoje vibra nesses lugares. 

Um ato fotográfico talvez seja menos violento do que a ação de pintar sobre uma tela, ou de moldar uma escultura. Mas pode se tornar tão ou mais violento quando, sob um olhar estrangeiro, invade um mundo de personagens próprios e espontâneos, acostumados a uma cultura muitas vezes percebida como bárbara ou tacanha aos olhos do ocidental "civilizado". Esse olhar se choca com o que vê e representa. Admitir esse estranhamento, essa "batida de frente" com o objeto representado transforma-se, por fim, naquilo que confere a ele, como obra de arte, potência e encantamento. As fotos de Leah Gordon atuam, mais do que falam, nessa direção e sentido. 

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