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Louise Bourgeois, caneta sobre papel rosa, 2000 |
O conceito de estranhamento foi enfatizado várias vezes no
post anterior. É justamente ele, essa
palavra, que, a meu ver, define e justifica a existência do fazer arte desde
que o mundo é mundo. Afinal, quando éramos meros seres pré-históricos, com
poucos recursos tecnológicos para sobreviver, a tentativa de compreender o
ambiente à nossa volta nos impulsionava a desenhar e pintar nas paredes escuras
das cavernas onde morávamos. Eram cenas de caça; estratégias de captura dos animais
que nos alimentavam e aqueciam; eram visões hipotéticas de como a natureza
havia sido criada. Víamos e percebíamos o mundo ao nosso redor e buscávamos
atenuar a sensação de estranhamento em relação a ele – as pinturas rupestres
operavam uma transformação desse estranhamento em encantamento do mundo, depois
em familiarização, desencantamento, apropriação, e re-encantamento. Um
moto-contínuo sem fim, que com o passar dos anos e séculos foi se agregando a
inúmeras descobertas técnicas e
novas formas de expressão artística, até chegarmos aos dias de hoje,
quando uma profusão de representações e simulacros invadem nossas cabeças como
resultado dessa mesma operação primitiva de dominar e simbolizar o que nos é
estranho.
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Pinturas rupestres encontradas nas Grutas de Lascaux, sudoeste da França, representando a caça do homem primitivo |
Voltando ao filme de Almodóvar, “A Pele que Habito”, a
situação de estranhamento é limite. Vicente foi mutilado e desumanizado pela
ação vingativa de seu algoz, a um tal ponto em que lhe restou o confinamento em
um quarto-cela, monitorado 24 horas por dia, sem contato com o mundo exterior, e
sem poder ver e sentir a si mesmo, vestindo um body nude a fim de proteger a pele artificial enxertada em seu
corpo. Um corpo inteiramente estranho.
A única saída para esse boneco desumanizado para restituir
um mínimo de sanidade mental é recorrer a algum tipo de simbolização. E
Almodóvar se vale da obra visceral e complexa da artista contemporânea Louise
Bourgeois para guiar Vera/Vicente em seu caminho de compreender o
incompreensível, o que lhe é medonho e extremamente doloroso.
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Vera/Vicente (Elena Anaya) em seus exercícios "bourgeoisianos" em seu bondage suit |
Os exercícios de yoga, os alongamentos executados por Ver com
seu bondage suit remetem aos bonecos
cor da pele, amorfos e desfigurados que Bourgeois concebeu e costurou. Figuras
mutiladas e duplicadas. Solitárias ou empilhadas em grupo. Representação de
castração e violência, do desumano.
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Figura-faca, de Louise Bourgeois, de 2002 |
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Boneca mutilada de Louise Bourgeois |
Os escritos feitos pela prisioneira em todos os espaços em
branco das quatro paredes que a encarceram repetem a todo momento os dizeres
“sei que respiro”, bem como são preenchidos por desenhos baseados na
“mulher-casa”, também de Bourgeois, um híbrido a representar o horror e a busca
pela sua expiação.
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Cena de "A Pele que Habito" em que Vera observa seus desenhos e escritos feitos no cativeiro ("a mulher-casa" de Bourgeois está à direita, na parede. |
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Desenho de Bourgeois, denominado "mulher-casa". |
Almodóvar faz uso explícito da arte de Bourgeois em “A
Pele”. O espectador não precisa ter conhecimento prévio da extensa obra da
artista franco-americana para se dar conta de que Vera/Vicente produz sua arte
por uma questão de sobrevivência e saúde psíquica, como principal meio, naquele
contexto, para viabilizar sua fuga e sua volta ao mundo. Nas próprias palavras
de Louise B., em sua obra de 2002, “a arte é uma garantia de sanidade”.
Vera/Vicente é um homem das cavernas, primitivo em sua
condição de estranhamento em relação ao que a cerca. Porém, altamente
sofisticada e hábil para organizar e mapear esse estranhamento, nomeá-lo e
simbolizá-lo. E nessa operação, o homem pré-histórico, assim como Vera/Vicente,
se reposicionam no mundo não como meros vencedores ou conquistadores. Mas como
indivíduos mais conscientes de sua frágil condição humana.
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