The art i live in. A arte que habito. Claramente, uma paráfrase do título do filme mais recente do diretor espanhol, Pedro Almodóvar, “A Pele que Habito”, de 2011. Um filme estranho na trajetória recente de Almodóvar. Não no sentido das perversões ou perturbações sempre característicos de seus personagens, normalmente envolvidos em tramas carregadas, simultaneamente, de humor e lágrimas. Talvez até seja uma volta às suas origens, não sei, mas isso pouco importa aqui. O que me interessa é exatamente o fato de “A Pele que Habito” ter causado essa estranheza de crítica e público, quando se costuma esperar do realizador espanhol elementos de leveza e redenção usualmente presentes em suas obras.
Vicente transformando-se em Vera |
Agora,
interessa-me esse segundo elemento de estranheza no filme de Almodóvar. Não
apenas a estranheza da trama de horror, violenta e trágica, mas a estranheza e
mal-estar de um homem transformado, à sua revelia, em mulher. Um novo ser que não
se reconhece, que perde o poder de sentir, um alguém desumanizado. Presa de seu
criador, Vicente/Vera não tem nem mesmo a liberdade de se matar, pois a
artificialidade desse híbrido permite um eterno reviver. Ela(ele) é obra de um
outro, não de si mesma(o). Somente quando Vicente/Vera se recria como
Vera/Vicente, num novo "eu-próprio", surge então a possibilidade de sobrevivência. A re-apropriação de uma identidade, de um mundo seu, ocorre por intermédio de um diário escrito
ininterruptamente nas paredes de sua cela, através de suas costuras, colagens, esculturas e desenhos, nos quais trabalha a estranheza de sua duplicidade, de sua mutilação
e falta. Ao longo desse processo, nasce a força para escapar, para fugir de um destino cruel de objeto, e tentar retomar sua vida
anterior, retornar ao lar e à mãe. Voltar para um abrigo minimamente
confortável, mesmo sabendo, inconscientemente, que isso nunca lhe será possível novamente.
Daí a sequência final do filme, não menos estranha porque abrupta e absurda: Vera entra no brechó de roupas de sua mãe, uma senhora desgastada e envelhecida pelo desaparecimento do filho, e se apresenta, “Olá, sou Vicente”.
Daí a sequência final do filme, não menos estranha porque abrupta e absurda: Vera entra no brechó de roupas de sua mãe, uma senhora desgastada e envelhecida pelo desaparecimento do filho, e se apresenta, “Olá, sou Vicente”.
Vicente (Jan Cornet) em seu primeiro cativeiro, antes da vingança ser consumada. |
Plano de "A Pele que Habito" (2011), no qual criador e criatura são colocados de maneira simétrica, baseado na tela do pintor renascentista italiano, Ticiano, "Vênus e Organista", de 1548. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário