sábado, 23 de fevereiro de 2013

o autorretrato ou a esfinge...

Laura Cumming, crítica de arte do The Observer, escreveu "Uma Face para o Mundo: Sobre Autorretratos". O livro é o mais recente estudo do qual tenho notícia a respeito do tema do autorretrato na história da arte. Aparentemente um tema tão simples, talvez banal, mas só na aparência. Pois o autorretrato esconde e revela uma série de pré-conceitos, interpretações anacrônicas e muitas vezes restritas, de um tema desde há muito presente nas artes plásticas, com o agravante de ter se tornado muito mais recorrente e problemático nos dias de hoje. Afinal, como diz Cumming, enquanto houver a luz do sol, haverá o nosso reflexo em espelhos, poças d'água, portas de vidro, janelas de automóveis. A questão da representação do ego, do retrato de si próprio, está indissociada a um mistério provocante - como do meu próprio inconsciente, só tenho conhecimento de mim, do meu rosto, por intermédio de um outro meio: os espelhos, as poças, de água, as portas de vidro, as janelas dos carros. E isso sempre se dará de forma parcial, esparsa, nunca inteira, objetiva.

Desse primeiro pressuposto, advém um raciocínio fundamental. O de que não há uma correlação entre as teorias do consciente do século XIX e a emergência dessa consciência de si para o artista. Muitas vezes, a história da arte busca ora generalizar ora datar determinados movimentos ou tratamentos de temas artísticos como forma de explicá-los mais objetivamente. Mas nem sempre essas tentativas se sustentam. Como artistas do porte de Jan van Eyck ou de um Albrecht Dürer (estamos falando de fim da Idade Média, início do Renascimento) supostamente não tinham consciência de si próprios, quando se retrataram, respectivamente, em "Retrato de um Homem com Turbante" (1433) e em "Autorretrato", de 1500? Havia a necessidade de um meio por onde se ver para se retratar, mesmo que uma memória de si. A consciência de si é intrínseca porque inseparável do fazer artístico de um autorretrato. 

Mais para frente, vemos Rembrandt se retratando em diferentes fases de sua vida. Diego Velázquez como personagem de sua própria obra, em "As Meninas", como o artista mesmo, chamando o espectador, através de sua técnica de perspectiva, para participar desse testemunho, dessa ampla consciência. E, por ora, temos Francisco Goya, um pintor extremamente preocupado com a questão da representação, de como trazer essa condensação poderosa daquilo que se dá a ver de inúmeras formas e nunca de uma única (com a família real espanhola, conseguiu retratá-la como nobreza e decadência, ao mesmo tempo; o horror das guerras napoleônicas na Espanha; e a si próprio, com uma curiosidade de quem olha pra fora, e não para dentro).

Nunca teremos acesso aos conteúdos, pensamentos e sentimentos humanos a não ser que eles se transformem em ações, discurso, obras. É nessa concepção que reside a força do auto-retrato. Numa aparente revelação de um mundo interior, o que se vê, ao contrário, é o externo, a carcaça. Porém, um externo transfigurado pelo desenho do artista, seus traços, cores, pinceladas, suas luzes e sombras, seus disfarces. É a face para o mundo; uma revelação, mas, acima de tudo, rostos inescrutáveis, esfinges.
"Retrato de Homem com Turbante", de 1433, auto-retrato do pintor holandês Jan Van Eyck
"Autorretrato",  do alemão Albrecht Dürer, de 1500.
4 autorretratos do artista holandês Rembrandt: do primeiro até este último, cronologicamente executados em 1629, 1634, 1643 e 1659.
"As Meninas", do espanhol Diego Velázquez, de 1656.
2 autorretratos de Francisco Goya: o primeiro, de 1815; o segundo, de 1826. 


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