É nesse mesmo contexto de fluxos migratórios compulsórios, movidos à pobreza ou belicismo contra minorias, religiões, gêneros e afins, no mesmo "melting pot" em que se dissolvem e se aquecem ininterruptamente discussões ligadas à igualdade das etnias, sexos, gêneros, transgêneros e orientações sexuais, que surgem 3 filmes independentes "pero" ditos hollywoodianos a nos remeter a essas mesmas questões mas em momentos históricos passados: "Carol", "A Garota Dinamarquesa" e "Brooklyn".
Outro elemento em comum - a meu ver - é a escolha pela linguagem melodramática para as narrativas. Todos os sentimentos, aparentemente, são vivenciados intensamente. Talvez porque se tratem de dramas profundos como a descoberta de pertencer a um corpo 'errado', em A Garota Dinamarquesa, ou o tabu relativo ao amor entre 2 mulheres, pertencentes a classes sociais tão distintas, no caso de Carol.
E aqui já tiro um pouco Brooklyn da jogada. Porque a "pobre-imigrante-irlandesa-jeca-transformada-em-it-girl-vivendo-no-brooklyn-em nova york-ao-voltar-à-sua-cidade-natal-na irlanda-e-se-ver-dividida-entre-dois-mundos-tão-distintos" convence bem pouco. É raso, pouco verossímil. Não vemos tantos dilemas morais, tantas ambições a serem conquistadas, nada que, da forma como colocada em 2015, ano de produção do filme, nos traga algum choque ou apelo. Igualmente se o filme fosse exibido em 1951-52. Quantos melodramas, comédias, filmes de ação feitos àquela época não eram muito mais transgressores e perigosos - e aí realistas, porque diziam o que no mundo quotidiano era interdito dizer - do que a saga da protagonista interpretada por Saoirse Ronan? (fala-se "sertia" como "inertia"). Vemos uma certa "sanitarização" da realidade dos imigrantes pelas lentes do diretor do filme.
A Garota Dinamarquesa é a próxima a rodar no jogo. O que dizer da impecável direção de arte, dos figurinos, da reconstituição de época das locações em tantos países diferentes? Sem hesitar, digo, é tudo muito lindo. E é aí que essa beleza seduziu meu olhar para outros cantos, outras paragens que não o cerne da história - o drama excruciante do pintor-homem que se vê obcecado em se tornar mulher, a ponto de arriscar sua própria vida num dos primeiros relatos existentes de cirurgia de mudança de sexo. Eddie Redmayne e suas personagens diminuíram-se diante de tanta beleza, beleza inclusive de Alicia Vikander e sua personagem, na medida em que ela abraça, como mulher, esposa e companheira de Einar / Lili um papel beirando a mártir, a Joana D'Arc assexuada até o final acompanhando e apoiando a saga do marido. Bem pouco verossímil igual. Da mesma forma que Lili brota feito um poço artesiano perfurando no deserto - e que começa a jorrar em 5 segundos após o furo no chão - a compaixão sem medida de Gerda traz a personagem de Vikander para o primeiro plano (e aí por que supporting actress se é ela, na minha opinião, que conduz o filme?). Muito gloss e glamour para pouca profundidade no tratamento do tema - cadê o preconceito da época, com todo seu peso? a divisão emocional, a dúvida de Einar e Lili, como se Lili tivesse chegado pra ficar de uma forma posseira, levando enxurrada abaixo o que já existia da personalidade e do gênero daquele corpo já habitado. Onde está o drama na continuidade do artista que ali sempre viveu, naquele corpo? No filme, são como 2 personas distintas. Cortadas a laser...
E eis que me derramo por Carol. Porque a beleza das atrizes, os figurinos incríveis, a direção de arte também magnífica estão organicamente amalgamadas à uma proposta de cinematografia. A qual, por sua vez, nos leva a uma proposta clara - da qual podemos discordar, mas é a mais clara e objetiva das 3 propostas dentre os 3 filmes em questão - de Bildungsroman, de realidade versus reflexo, sonho; aquela menina aparentemente tão bobinha, naïve, a Therese de Rooney Mara, demonstra abertamente suas inseguranças, suas ignorâncias mas também seus desejos, seus sonhos e ambições. E o veículo transformador, a guia a conduzi-la entre os jogos de luzes noturnos refletindo nos táxis de Nova York, é Carol - uma mulher ciente de seus poderes de sedução, carismática, elegante, culta; porém confinada a uma vida pequeno-burguesa, plena de insatisfações. A direção da trama, como o roteiro circular, que me surpreendeu no final, opera para contar uma história passo a passo, de transformação com sofrimento e alegria, de descoberta, um encaminhamento sem pieguices ou polarizações. Carol, o filme, pode chocar por sua sutileza. Pela construção de personagens que poderiam ser reais, que são reais em seus conflitos e dramas. Personagens que, porém, ao serem transportados para a tela grande, da maneira como Toddo Haynes o faz, transgridem essa realidade sem romper com ela, estabelecendo um diálogo no qual aceitamos, como espectadores, o pacto da verossimilhança. Tiramos os nossos e calçamos outros sapatos.
A beleza tem seus méritos, seus propósitos, seus artifícios. No mundo distópico em que vivemos, a sede e fome pelo belo pode tanto nos iludir ao nos conduzir ao isolamento, à um mundo raso sem diferentes perspectivas e interpretações, como também pode nos redimir da culpa de termos que ser o que não queremos ser, o que não desejamos. E aqui, beleza não é espelho, não é Narciso; beleza é reconciliação com o real, é possibilidade de realização.